Brincar à criticazinha

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 20120-02-20
A crise em Portugal cria graves problemas de pobreza logo na altura em que a Segurança Social, espartilhada na emergência financeira, está menos capaz de lhes acudir. Muitos dão o Estado-providência como falido. Isso não é verdade. O sector público terá sempre um lugar indispensável no apoio social. O que faliu foi o seu totalitarismo assistencial.
Há décadas que, por opções ideológicas e populismo eleitoral, os poderes públicos nacionalizam as esmolas. Metem-se entre pobres e benfeitores, tributando os segundos para ter o mérito de ajudar os primeiros. A fúria regulatória de uma burocracia crescente persegue qualquer obra de solidariedade, enquanto cria alternativas estatais para as estrangular. Foi este suposto Estado-providência que se mostrou insustentável. Agora os poderes públicos têm de encontrar o seu lugar subsidiário numa sociedade equilibrada.
A inelutável necessidade de contar com a sociedade e Igreja no apoio aos necessitados exige também que se reveja a antiga campanha cultural que preparou o assalto público à assistência social. Há décadas que várias forças se dedicam à tarefa de denegrir as multisseculares instituições de caridade cristã, atacando em nome dos pobres aqueles que mais se esforçam para os ajudar. Alguns casos ficaram famosos.
O professor José Barata Moura, reputado académico e antigo reitor da Universidade de Lisboa, é autor de algumas das melhores canções infantis e de intervenção da língua portuguesa. O seu primeiro disco, Caridadezinha (Orfeu, 1973), incluía um dos temas mais famosos e poderosos nesta questão: Vamos brincar à caridadezinha. Nele o cantor ridiculariza a "festa, canasta e boa comidinha" onde, com "os desportistas da caridade", se "rouba muito mas dá prenda, e ao peito terá uma comenda".
Há mais exemplos. O genial Quino (Joaquín Salvador Lavado), criador argentino de Mafalda, a contestatária, numa das suas hilariantes e lúcidas tiras pôs Susaninha a dizer à amiga: "Também fico com a alma ferida quando vejo os pobrezinhos, acredita! Mas quando formos senhoras faremos uma associação de caridade. E organizaremos chás e banquetes com perú, lagosta, leitão... para arranjarmos fundos para comprarmos farinha, massa, pão e essas coisas que comem os pobres" (Quino, 1973, 13 anos com a Mafalda, Publicações Dom Quixote, 1983, p.128).
A crítica social é compreensível. É sempre fácil ridicularizar os opulentos e todos ficamos chocados pelo contraste entre luxo e miséria. Mas se pensarmos um pouco vemos como esta censura é nociva e contraproducente. Afinal, se há muita coisa a reprovar nos endinheirados, uma das poucas em que os devemos louvar é precisamente quando ajudam os necessitados. Esta ferroada atinge os pomposos quando fazem o bem.
Tais repreensões não são feitas do ponto de vista dos desgraçados, os quais, independentemente da motivação da ajuda, ganham muito com ela. Se queremos ajudar os pobres, é bom não desdenhar o dinheiro de quem o tem. Eles ficariam muito prejudicados com a promessa final da canção: "não vamos brincar à caridadezinha."
Além disso, o mesmo contraste estético que motiva a crítica ressurge claramente nas alternativas. Havia "chás e banquetes" na URSS e já recebi folhetos de congressos sobre a pobreza em hotéis de luxo. Pior, o sucesso destas críticas acabou por ir para lá do pretendido. Não só "estragaram" a palavra caridade, como se costuma hoje ouvir a cada passo, preferindo-se expressões anódinas e vazias, como solidariedade ou assistência, mas tiveram efeito claramente redutor nos esforços de apoio social. É comum ainda hoje, 40 anos depois, ouvir a crítica de "caridadezinha" cada vez que alguém cria uma iniciativa de auxílio. A gargalhada destrói sempre mais do que quer.
Claro que a justificação do remoque era mais profunda. Preconizava-se uma revolução social, que garantisse a todos os cidadãos o direito a certo rendimento, seguro pelo Estado. É isso que falha sucessiva e fragorosamente desde 1973, confirmando a maior força social da humanidade, a caridade cristã.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Comentários

Anónimo disse…
Ouvi a canção e deu-me repugnância ouvi-la, como repugnante é a injustiça e a mentira. Ele não vê que cinco euros nas mãos de quem morre de fome vale muito mais do que nas mãos dele, que não passou fome, se calhar, mas que pelo menos pode cantar essa canção cheia de presunção. Sobre o acordo ortográfico, concordo plenamente consigo.

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