Pietà'
VASCO GRAÇA MOURA
DN 2012-02-15
A imagem da mulher que segura o filho morto nos braços tornou-se, a partir da Idade Média, uma importante referência plástica e emocional do Cristianismo. Da rude imaginária medieval, de origem alemã (os Vesperbilder), desde o século XIII, e da Pietà dita de Avignon, de meados do século XV - esta ainda com processos típicos dos primitivos na elaboração realista da representação -, até aos Renascentistas e Maneiristas, à estatuária religiosa do Barroco e a Van Gogh, a figuração da mater dolorosa tornou-se um símbolo do drama humano que representa a perda de um filho. Mas na série avulta, sem carga expressionista, a Pietà do Vaticano, de Miguel Ângelo (1499), em que são representadas a gravidade melancólica da mãe, alcandorada a um idealizado plano neoplatónico e metafísico, e a morte do filho, a finitude irremediável do corpo humano, numa articulação indissociável e deslumbrante entre esses dois planos.
Na escultura do Buonarroti, a mãe de Jesus é uma jovem mulher, sem idade para ser mãe dele, talvez por alusão ao Dante que escreve "Vergine Madre, figlia del tuo figlio", talvez para aludir a uma virgindade sem corrupção, como sugere Vasari e o próprio escultor terá dito. Aqui, a arte não imita a Natureza, uma vez que a mãe nunca pode ser mais nova do que o filho. Vê-se antes como um reflexo do divino e a questão deixa de se pôr em termos de mimetismo. Na pureza das suas linhas, a beleza daquela mãe não é deste mundo e não exprime, sequer contidamente, a dor lancinante de quem acaba de perder um filho. É antes uma figuração da ordem do transcendente e do intemporal. Prende-se ao mundo das ideias e da perfeição divina, na sua serenidade contemplativa, ante a perda de um ser amado. Ou, como diria o Camões da "Sôbolos Rios" tratando de outra humana figura, "é raio da formosura / que só se deve de amar", "é sombra daquela ideia / que em Deus está mais perfeita".
No entanto, o corpo morto que essa mulher ampara nos seus braços é bem deste mundo no seu realismo insuperável. É um cadáver cujo peso inerte nos é dado com suprema mestria, na modelação e na sugestão dos músculos e das veias no mármore polido, num abandono fortemente acentuado pela maneira como o braço direito de Jesus tomba até ao solo e como o corpo dele, esvaídas todas as tensões, resvalou para a morte, e nos é exposto naquele regaço.
Falando disso, dizia Vasari ser "certamente um milagre que uma pedra inicialmente sem qualquer forma tenha sido levada àquela perfeição que a Natureza se empenha a formar na carne". Não tem nada de metafísico e, todavia, tem tudo de metafísico. É a morte daquele homem ali representado na beleza material das linhas do seu corpo sem força, mas é também, no colo de quem lhe deu vida, a morte do Homem, projectada numa dimensão do universal.
O equivalente musical transfigurado de uma Pietà são os Stabat Mater, tal como o podem ser as Paixões, de Heinrich Schütz ou de J. S. Bach, interpelações que nos dizem de um sofrimento que se propaga ao mundo, fazendo-nos vibrar entre uma nostalgia do divino, um sentimento de piedade e a emoção da maior dor humana, comovendo-nos na catarse inevitável que provoca.
É para essa dimensão cultural e existencial que remete a extraordinária fotografia de Samuel Aranda, agora premiada pela World Press Photo. A imprensa salientou, justamente, a sua relação formal com a Pietà. Uma composição triangular, em que uma mulher velada segura o corpo de um homem. Não sabemos se é seu filho ou não. Não sabemos se está morto ou apenas ferido. Não sabemos a idade que ela e ele têm. Mas sabemos o que nos lembra.
Se historicamente uma cena semelhante ocorreu na morte de Jesus, esta imagem é muito mais "realista" na representação correspondente à mãe, do que a de Miguel Ângelo na vibração renascentista esplendorosa da sua Pietà.
E se é certo que um episódio ocorrido no Iémen não tem nada a ver com a morte do nazareno, também é certo que nós não conseguimos lê-lo sem esse referente iconológico fortíssimo da tradição ocidental. Os clássicos ajudam-nos a interpretar o mundo.
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