O imperativo categórico
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-11-11
O autor toma uma posição clara e categórica sobre este problema espinhoso, "esclarecendo que me filio, neste domínio, na perspectiva deontológica de proibição absoluta de tortura" (p. 104). Aliás, assume mesmo uma excepção à sua posição pessoal de fundo pois, como explica numa entrevista de divulgação do livro: "Nunca fui um deontologista, nunca me filiei nas correntes morais dos que acham que têm imperativos categóricos e uma ética da convicção... Sempre me filiei nas correntes do consequencialismo e do utilitarismo... Aqui, entro em divergência. Porque me tornei um deontologista num único ponto, um ponto que une várias gerações de filósofos... Qual é o ponto? A vida humana é única, singular e insubstituível" (Expresso Revista, 19/Out/2013, p. 29-30).
Esta afirmação é decisiva e, como se vê, marca uma evolução importante na trajectória do autor. Mas é impossível não aplicar o mesmo raciocínio, e toda a longa, detalhada e erudita elaboração que ele faz na parte II do volume, a um outro caso, precisamente aquele em que o Governo do primeiro-ministro José Sócrates foi mais decisivo sobre o futuro nacional, a liberalização do aborto pela Lei 16/2007 de 17 de Abril e a sua banalização pela Portaria 741-A/2007 de 21/Junho. O paralelo é inevitável dado o argumento, repetido à exaustão por todos aqueles que se opunham à posição do Governo de então, ser exactamente aquele que agora José Sócrates apresenta como o seu "imperativo categórico": a vida humana é única, singular e insubstituível.
Claro que podemos dizer que o caso do aborto é bastante diferente da questão da tortura. E de facto é. Mas existem não só paralelos inelutáveis, mas até detalhes que tornam a interrupção da gravidez ainda mais adequada aos argumentos usados por Sócrates na sua tese. Dadas as competências que ele revela no intrincado campo da filosofia moral, não seria digno descartar de forma ligeira estas implicações.
Como na tortura, temos o confronto de dois direitos, o do nascituro e o de sua mãe. No entanto, podemos dizer que os valores envolvidos são ainda mais extremos do que na situação analisada no livro. De facto os graves problemas que conduzem uma mulher a abortar, mesmo se pungentes, são muito menos graves do que os morticínios que a tortura pretende evitar. Por outro lado, a vítima do aborto não sofre apenas a dor extrema e a cruel indignidade, mas fica impedida de nascer e ver o sol, anulando-lhe na morte a mais ínfima partícula de identidade.
Certamente que, com a análise sofisticada que faz no seu volume, o autor não usará a escapatória indigna de dizer que o embrião ainda não é uma pessoa, omitindo-o assim dos seus princípios. Não só se trata indiscutivelmente de uma vida humana, mas esse argumento cai no rol das múltiplas negações da humanidade dos terroristas, que ele tão bem desarma na sua tese.
O autor ainda não se disponibilizou para esta discussão. Mas ao menos, no meio das lutas terríveis que nos dividem, devemos desfrutar deste raro momento de acordo, à volta de uma ideia tão básica e decisiva: a vida humana é única, singular e insubstituível
DN 2013-11-11
Foi lançado recentemente, podemos dizer com honras de Estado, o livro de José Sócrates A Confiança no Mundo; Sobre a Tortura em Democracia (Verbo, 2013). O volume, resultado de um trabalho académico, trata um tema importante e perturbador, que tomou grande actualidade com a recente luta americana contra o terrorismo. Este caso, verificando-se num ambiente de Estado de direito livre e democrático, traz também ao tema o contorno particular que justifica o interesse adicional do texto.
Entre os vários elementos aduzidos, o autor não se exime ao aspecto mais espinhoso e complexo, a filosofia moral. Na situação de tortura confrontam-se dois direitos, o do preso e o da sociedade que ele pretende agredir. É fácil surgir a escolha entre a dignidade básica do terrorista, agredida pelas sevícias, e as vidas a salvar pela informação que ele guarda. Aqui os dilemas facilmente se tornam, eles mesmos, torturadores, de tão complexos.O autor toma uma posição clara e categórica sobre este problema espinhoso, "esclarecendo que me filio, neste domínio, na perspectiva deontológica de proibição absoluta de tortura" (p. 104). Aliás, assume mesmo uma excepção à sua posição pessoal de fundo pois, como explica numa entrevista de divulgação do livro: "Nunca fui um deontologista, nunca me filiei nas correntes morais dos que acham que têm imperativos categóricos e uma ética da convicção... Sempre me filiei nas correntes do consequencialismo e do utilitarismo... Aqui, entro em divergência. Porque me tornei um deontologista num único ponto, um ponto que une várias gerações de filósofos... Qual é o ponto? A vida humana é única, singular e insubstituível" (Expresso Revista, 19/Out/2013, p. 29-30).
Esta afirmação é decisiva e, como se vê, marca uma evolução importante na trajectória do autor. Mas é impossível não aplicar o mesmo raciocínio, e toda a longa, detalhada e erudita elaboração que ele faz na parte II do volume, a um outro caso, precisamente aquele em que o Governo do primeiro-ministro José Sócrates foi mais decisivo sobre o futuro nacional, a liberalização do aborto pela Lei 16/2007 de 17 de Abril e a sua banalização pela Portaria 741-A/2007 de 21/Junho. O paralelo é inevitável dado o argumento, repetido à exaustão por todos aqueles que se opunham à posição do Governo de então, ser exactamente aquele que agora José Sócrates apresenta como o seu "imperativo categórico": a vida humana é única, singular e insubstituível.
Claro que podemos dizer que o caso do aborto é bastante diferente da questão da tortura. E de facto é. Mas existem não só paralelos inelutáveis, mas até detalhes que tornam a interrupção da gravidez ainda mais adequada aos argumentos usados por Sócrates na sua tese. Dadas as competências que ele revela no intrincado campo da filosofia moral, não seria digno descartar de forma ligeira estas implicações.
Como na tortura, temos o confronto de dois direitos, o do nascituro e o de sua mãe. No entanto, podemos dizer que os valores envolvidos são ainda mais extremos do que na situação analisada no livro. De facto os graves problemas que conduzem uma mulher a abortar, mesmo se pungentes, são muito menos graves do que os morticínios que a tortura pretende evitar. Por outro lado, a vítima do aborto não sofre apenas a dor extrema e a cruel indignidade, mas fica impedida de nascer e ver o sol, anulando-lhe na morte a mais ínfima partícula de identidade.
Certamente que, com a análise sofisticada que faz no seu volume, o autor não usará a escapatória indigna de dizer que o embrião ainda não é uma pessoa, omitindo-o assim dos seus princípios. Não só se trata indiscutivelmente de uma vida humana, mas esse argumento cai no rol das múltiplas negações da humanidade dos terroristas, que ele tão bem desarma na sua tese.
O autor ainda não se disponibilizou para esta discussão. Mas ao menos, no meio das lutas terríveis que nos dividem, devemos desfrutar deste raro momento de acordo, à volta de uma ideia tão básica e decisiva: a vida humana é única, singular e insubstituível
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