Carta a Pacheco Pereira – parte I e II

João Miguel Tavares Público, 26/11/2013

Caro amigo, companheiro e camarada Pacheco Pereira: eu escutei com a maior atenção a sua intervenção no encontro intitulado Em Defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social, e há um aspecto ao qual sou – sem ironias – muito sensível: a sua profunda indignação em relação ao que se está a passar no país.
O Pacheco Pereira não tinha a ganhar absolutamente nada em estar ali – a esquerda nunca o irá apreciar, e a direita ficou a apreciá-lo um pouco menos –, e por isso a sua presença na Aula Magna foi certamente resposta a um impulso profundo de consciência. Como disse no seu discurso, "os tempos não estão para inércias nem para confortos". Tenho o maior respeito por isso.
Mais do que respeitar, ao descrever a "estranha assembleia" que ali se reuniu, percebi de repente que também eu poderia ter lá estado, já que pertenço ao grupo dos que pensam – são palavras suas – que "o memorando, filho da necessidade extrema, poderia ser aplicado de modo muito diferente, sem o rasto de incompetências e mistelas ideológicas deixadas por este Governo". E se lá estivesse, com certeza tê-lo-ia aplaudido quando denunciou a promiscuidade entre o Estado e o sector financeiro, a tolerância a swaps e PPP enquanto "se viola todos os contratos com os homens e as mulheres do país", ou a tentativa dos governantes se desresponsabilizarem "por políticas que abraçaram com todos os braços, e que agora, quando correm mal, fazem de conta que não é com eles". Tudo isto é verdade, e eu assino por baixo.
O problema, caro Pacheco Pereira – e é aqui que nós nos separamos irremediavelmente – é que da mesma forma que para si é insuportável a hipocrisia e incompetência do actual Governo, e por isso luta contra ele com todas as suas forças, para mim é insuportável a hipocrisia de quem finge que o mero protesto é uma resposta moralmente aceitável para os problemas que nos afundam. Para si, chega-lhe "não lutar pelas mesmas coisas mas contra as mesmas coisas". Chega-lhe que Mário Soares esteja do lado certo, porque não se ri "cinicamente de receitas abstractas", enquanto o primeiro-ministro não tem um pingo de "empatia e sentimento de comunidade com os portugueses". Isto chega-lhe e chegou-lhe para ir à Aula Magna. Não para "defender", mas sim para "atacar".
Só que, diante disto, confesso que os meus sentimentos se misturam. Por um lado, acho comovente que o Pacheco Pereira que leio há mais de 20 anos, o homem cerebral, racional, antidemagógico, opositor do engraçadismo, combatente de todas as simplificações, se transforme subitamente num vulcão de emoções, de indignação e de acusações simplistas. Por outro, faz-me confusão a falta de critério desta sua análise e a forma como ela legitima o silêncio sobre a mais urgente pergunta dos nossos dias: o que fazer a seguir?
Toda a crítica política séria que em 2013 não venha acompanhada de uma alternativa concreta e praticável é, citando São Paulo, "como bronze que ressoa ou como címbalo que tine". É um convite ao vazio. Na Aula Magna gritou-se muito por demissão. Mas demissionários são todos os que querem ajudar a geração nem-nem com políticas nim-nim – nem assim, nem assado, nem de forma alguma que o povo português consiga compreender. Que o Pacheco Pereira se tenha transformado, aos meus olhos, numa pessoa surpreendentemente emotiva, acho até bonito. Mas depois de todo este empolgamento, faz-se o quê, afinal?
(Continua…)

Carta a Pacheco Pereira – parte II

João Miguel Tavares Público, 28/11/2013
A hipocrisia tem limites. E o caro Pacheco Pereira, com a idoneidade que o caracteriza, deveria ter olhos para ver isso.
Permita-me então continuar esta carta de choque e algum pavor, caro amigo, companheiro e camarada Pacheco Pereira, após escutar a sua intervenção no encontro da Aula Magna. Nós tínhamos ficado no ponto em que eu defendi que não se pode sair em auxílio da geração nem-nem (nem estuda, nem trabalha) com políticas nim-nim – nem assim, nem assado, nem de qualquer forma compreensível para quem não se deixe seduzir por vendedores da banha da cobra, tipo António José Seguro.
O problema, portanto, não está no "atacar", mas em saber como nos devemos então "defender", para nos opormos à troika e ao Governo de uma forma que: a) esteja efectivamente nas nossas mãos; b) não exija a saída do euro; c) não perore sobre haircuts e reestruturações sem ter em conta que 35% da nossa dívida está na mão de investidores domésticos e apenas 22% em mãos estrangeiras (o resto, segundo estimativa do Deutsche Bank, é da troika); d) perceba que, por muito escandalosos que sejam swaps, PPP e trafulhices financeiras, Portugal continuaria escandalosamente falido mesmo que eles não existissem.
O Pacheco Pereira tem sido muito claro na defesa de que, em alturas de urgência e de crise como esta, é necessário escolher o lado da barricada em que se quer estar. Certo. Só que hoje em dia, mais importantes do que as clássicas trincheiras pró-governamental e antigovernamental são as trincheiras dos programas políticos aplicáveis e a dos programas políticos lunáticos – e essas trincheiras, como na guerra, cruzam-se com frequência. Ora, de que me serve saltar todo ufano para a trincheira antigovernamental se depois ao meu lado tenho um combatente por um programa político lunático? Isso só faz sentido numa ocasião: quando se considera que abater o inimigo é mais importante do que escolher o amigo. E sobre isso tenho a dizer o seguinte: olhando para os amigos que Pacheco Pereira tinha sentados ao seu lado na Aula Magna, não admira que pense assim.
Eu não tenho espaço para estar aqui a analisar o currículo de vários companheiros de mesa de Pacheco Pereira, esses profundos indignados pela situação em que o país se encontra, mas passemos ao lado de Mário Soares para nos focarmos apenas num dos principais organizadores do evento e num dos seus últimos cargos públicos: Vítor Ramalho e a presidência do Inatel. E aqui, aconselho a todos os leitores as cinco páginas (pp. 98-102) que o livro Má Despesa Pública, de Bárbara Rocha e Rui Oliveira Marques, lhes dedica: de viagens a Bali a tradutores oriundos da Juventude Socialista de Setúbal, de cuja distrital o senhor Ramalho era presidente, passando pela famosa entrevista pela qual pagou cinco mil euros por ser sua obrigação "promover o Inatel", o que dali emerge é o retrato do típico político profundamente dedicado à causa pública, no sentido em que ela sempre fez maravilhas por si.
E é por isso, caro Pacheco Pereira, que embora eu simpatize com o seu discurso e comungue de muitas das suas preocupações, não sou capaz de fingir um torcicolo para não ver quem está sentado ao meu lado. Sim, nós precisamos de uma outra política e de outros políticos. Mas não precisamos só disso. Precisamos de uma alternativa consistente. E precisamos – sempre, por razões de memória – de apontar o dedo a quem andou a enterrar o país para agora vir, de pança cheia, armar-se em porta-voz dos pobres e oprimidos. A hipocrisia tem limites. E o caro Pacheco Pereira, com a idoneidade que o caracteriza, deveria ter olhos para ver isso.

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