Soares e a encruzilhada da esquerda
Alexandre Homem Cristo
Ionline, 2013-11-25
Enquanto vigorar este vazio de pensamento no centro-esquerda, serão os radicais a ter voz e a liderar a oposição ao governo
Na semana passada, Soares organizou mais um encontro de gente que, no geral, partilha duas características: odeia o governo e, à falta de melhores opções, quer acreditar no pensamento mágico. Ódio, porque prefere moralizar e acreditar que a austeridade existe por vontade do governo (que teria como missão empobrecer os portugueses) e não por necessidade imposta e negociada pelo PS, em 2011. Pensamento mágico, porque, sem alternativas reais, parece acreditar que seriam suficientes as saídas de Cavaco Silva e do governo para o país começar a crescer, os salários subirem e os impostos baixarem - no fundo, para a austeridade acabar. Ora, no final da sessão, para além do alívio catártico dos participantes, após repetidas descargas de insultos, o que ficou? Nada. E isso é não só revelador como útil para se perceber a encruzilhada em que se encontra a esquerda: não tem um discurso alternativo e, sem rumo, tem sido palco para os radicais imporem as suas soluções. De facto, no debate público, encontra--se muita gente com ideias e propostas (umas mais, outras menos plausíveis), mas não se vê nenhuma dessas propostas reunir consensos. Eurobonds? Sair do euro? Não pagar a dívida? Aumentar os impostos? Optar pela insubordinação? Apesar dos debates e tertúlias, dos encontros de Soares, dos congressos de alternativas e do partido de Rui Tavares, a esquerda não sabe exactamente o que quer. Defende banalidades e lugares-comuns. Não tem um discurso coerente. E sem um discurso que aponte para um caminho político, sobretudo no caso do PS, não será alternativa ao governo. Tudo por culpa própria.
Após tantas iniciativas, já se percebeu que este não é assunto que preocupe particularmente a esquerda. Em particular o PS, que só está à espera que o poder lhe caia no colo. Mas isso também tem consequências: enquanto vigorar este vazio de pensamento no centro-esquerda, serão os radicais a ter voz e a liderar a oposição ao governo. Infelizmente, apesar do seu estatuto, Mário Soares está hoje alinhado com esses radicais, e só é ouvido porque não há voz que se imponha no PS parlamentar.
Ora, em vez de lançar o debate, o histórico socialista juntou um monte de gente à sua volta para exigir as demissões do governo e de Cavaco Silva. Para lançar acusações sobre a destruição do Estado Social. Para ser aclamado líder dos que defendem a Constituição. E para profetizar para breve o recurso "legítimo" à violência contra o governo. Ou seja, Mário Soares optou por repetir tudo aquilo que caracteriza as intervenções diárias do PCP.
A situação é de uma tremenda ironia histórica. Em 1983, Soares governou Portugal sob assistência financeira do FMI, reconheceu a necessidade de "apertar o cinto" porque o país "habituara-se a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos" e foi alvo de ferozes críticas políticas. Em 2013, com o FMI de novo em Portugal, o mesmo Soares dirige ao governo as acusações de que foi alvo, 30 anos antes, e é aplaudido na Aula Magna por pessoas que, em 1983, o criticaram.
Mas, para além da ironia, é também uma situação grave. É cada vez mais visível, perante o desnorte ideológico do centro-esquerda, que a doutrina do PCP se está a impor no discurso da esquerda moderada e europeísta. O consenso e o diálogo ficaram mais difíceis de alcançar, e a política faz-se mais nas ruas do que no parlamento. Soares, que tanto combateu essa doutrina de ruptura, está agora a promover a sua normalização. E nem o seu estatuto poderá apagar isso da sua biografia.
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