Comichão na democracia

João Miguel Tavares Público, 05/11/2013

Houve um tempo em que a oposição se dava ao trabalho de discordar. Agora já nem chega a discordar, porque se recusa logo a discutir. Aquele guião da reforma do Estado apresentado por Paulo Portas? Aquelas ridículas 112 páginas em corpo 16 e espaçamento a duas linhas? Pois ele que as vá debater com quem lhe apetecer. Agora, com os partidos políticos, com aqueles que alegadamente foram eleitos para o confronto de ideias no Parlamento, com esses, nem pensar. Eles não querem. Recusam. Não deixam. Para o PS, para o Bloco, para a CDU, discutir aquele documento seria indigno, repugnante, repulsivo, viroso. O guião é a kryptonite que faz mirrar os superpoderes democráticos da oposição. Ela, sempre tão lesta a defender os interesses do povo, a denunciar os ataques da direita über-liberal, a unir as mãos em torno do Palácio Ratton, subitamente parece não ter qualquer problema em pronunciar as palavras "não discuto" numa democracia parlamentar. Como é que isso pode ser tido por normal? Eis o que me custa a perceber.
Far-me-ão a justiça de admitir que critiquei abundantemente Paulo Portas pela demora ridícula em apresentar aquilo que deveria estar pronto há dois anos e meio. Nesse sentido, é verdade que a sua reforma do Estado - agora apontada para o pós-troika, logo, para o pós-eleições - chega com uma legislatura de atraso. O guião, também é certo, é fraquito e tinha obrigação de estar muito mais bem feito. Mas não se pode dizer que um documento que propõe, entre muitas outras coisas, inscrever limites para a despesa na Constituição, despedir funcionários públicos (ou melhor, "flexibilizar o vínculo laboral"), atribuir a concessão de escolas a professores, fundir municípios, alterar a arquitectura do sistema judicial, reformar o IRS ou estabelecer um tecto nos descontos da Segurança Social e admitir a entrada de privados, é uma mão-cheia de nada. Ninguém com dois palmos de testa pode afirmar tal coisa. Que o critiquem, que o reprovem, que o ridicularizem. Mas recusar pura e simplesmente discuti-lo, numa democracia, não é aceitável.
OPS respondeu por carta ao convite para o debate dizendo que "tal proposta não pode ser considerada seriamente", e que se trata de "mais uma encenação para distrair as atenções dos portugueses". Catarina Martins declarou que "o Bloco não debate manifestos eleitorais da direita". O PCP garantiu tratar-se de "uma manobra de diversão" e de "subversão do Estado democrático e social". Rui Tavares, que no sábado anunciou a criação de um novo partido de esquerda por não se identificar com os actuais, veio dizer o mesmo que todos eles no primeiro texto após o anúncio: "Fizeram bem os partidos da oposição, logo que tiveram oportunidade de ler aquilo, em adoptar a primeira reacção das redes sociais. O guião é lixo." Como estratégia diferenciadora, é fraco.
E até Teixeira dos Santos, co-responsável pelo afundamento do país, teve a suprema lata de ir para a TSF falar em tom professoral, dizendo que, com ele, Paulo Portas "nem sequer ia à oral". O senhor Teixeira até pode estar cheio de razão quanto ao amadorismo do documento, mas é preciso não ter um pingo de vergonha na cara para, enquanto ministro das Finanças 2005-2011, sair de casa para dizer uma coisa daquelas. Não admira que com esta oposição, tanto desgraçado como eu acabe a votar nos mesmos incompetentes. Eles são bastante maus, não há dúvida. Mas ao menos comprometem-se. Os outros limitam-se a balançar entre a birra, a histeria e o amuo.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António