Mário Soares não tem amigos

Ionline, 2013-11-30
Isabel Stilwell

Velhice e poder tornam-nos egocêntricos e casmurros. Some-se a vaidade e o desastre é total. Mas podemos policiar o nosso cérebro, com a ajuda dos outros
Capítulo I
Se fosse nos tempos dos telegramas, tenho a certeza que teria sido por telegrama que teria recebido a mensagem urgente: "O que é que se passa? O Mário Soares não tem amigos em Portugal?" Fiquei a olhar para o e-mail de um colega jornalista francês, que não dizia mais do que isto, sem saber se havia de rir ou chorar. Estava tudo dito. Mário Soares não tem, decididamente, amigos em Portugal, que o protejam da vaidade e do egocentrismo, que se acentuaram com a idade, do desespero dos holofotes que contagia quem se habituou a viver sob a sua luz, agravados pelo sentimento de inimputabilidade que a velhice traz tantas vezes consigo. Ninguém que o confronte, ninguém que o proteja de ser usado por jornalistas desejosos de uma manchete de jornal, por colegas políticos a quem dá um jeito incrível deixá-lo imaginar-se mensageiro do apocalipse, indiferente às contradições, a apelar ao mata e esfola, numa demagogia sem fim. De facto, e acreditem que me custa dizê-lo, Mário Soares não tem amigos.
Capítulo II
O grande drama é confundir idade com sabedoria. É verdade que quando envelhecemos nos podemos tornar sábios, mas nem sempre acontece. Muitas vezes acabamos apenas casmurros e teimosos. Antes de começar a gritar comigo, dê-se ao prazer de ler "Uma visita politicamente incorrecta ao cérebro humano", do sábio neurologista e investigador Alexandre Castro Caldas.
"Sabemos, por exemplo, que ao envelhecer o balanço entre o córtex frontal e o córtex sensorial se altera em prejuízo da densidade do córtex sensorial. Será por essa razão que os mais idosos se tornam egocêntricos a rasar o autismo", escreve. O que significa? Que à medida que os nossos sentidos falham, os ouvidos, a visão e a mobilidade nos traem, a bitola dos nossos juízos passa a ser a experiência acumulada, a nossa base de dados. Convencemo-nos de que possuímos a verdade, distanciamo--nos da realidade mas sem aceitar que deixámos de a conhecer.
Mas diz mais: "Sabemos que o envelhecimento e o poder excessivo promovem os mecanismos de top-down (do interior do próprio para o mundo exterior), conduzindo a uma atitude egocêntrica da conduta com crenças rígidas alicerçadas na verdade em que acreditamos." E é por isso que, explica Castro Caldas, "no nosso relacionamento com o mundo é preciso saber exercer algum policiamento sobre a nossa forma de estar". E isso passa pela "capacidade de olhar para cada experiência como uma nova experiência, de forma que abra as portas à reflexão e amplie as nossas dúvidas e a nossa vontade de saber".
Há portanto esperança para quem tenha a humildade de aceitar as suas limitações e se mantenha atento às armadilhas do seu cérebro. E os bons amigos ajudam, quando são capazes de nos dizer o que não gostamos de ouvir.
Capítulo III
Nem de propósito tomei conhecimento de que o Instituto de Ciências da Saúde (ICS) vai lançar no início do ano de 2014 um programa destinado a alunos com idade mais avançada, em que se discutirão os processos relacionados com o envelhecimento de algumas capacidades do cérebro. Discutir-se-á a biologia do cérebro ao longo da vida, com linguagem própria para não especialistas e as modificações que se vão verificando na memória, na atenção, na linguagem, na actividade perceptiva, na marcha, no equilíbrio, no sono e noutras funções. O objectivo fundamental é esclarecer os "alunos" sobre mitos e verdades e acabar com os medos. O programa será feito integralmente pelo professor Castro Caldas, ao longo de três sessões, e em breve estará no site do ICS, para inscrições. Eu vou, e se o Dr. Soares tivesse amigos também ia.

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