A esquerda e a direita continuam em 1988

Vasco Pulido Valente
Público, 30/11/2013

Chegou agora a altura de calafetar a Alemanha. Por aqui, nem a esquerda, nem a direita falaram disso. Continuam ainda em 1988.

A UE foi desde o princípio uma ideia utópica, que só podia levar a uma catástrofe. Nascida durante a "guerra fria", tinha por força de ser democrática, na forma e na retórica. Mas nunca deixou de estar sob o domínio do poder dos grandes países que a tutelavam e da burocracia de Bruxelas que os servia.
O cidadão da Europa, que tinha um Parlamento para disfarçar, não pesava na política que a França e a Alemanha decidiam a favor do seu interesse nacional e dos seus protegidos. A famosa "solidariedade" que hoje se mendiga sempre se limitou a uma espécie de esmola para garantir a obediência e o sossego dos bárbaros da periferia. Havia em certos meios a ilusão que eles seriam eventualmente educáveis sob a direcção do Norte civilizado. Hoje já toda a gente decidiu que a tentativa falhou.
Infelizmente, o colapso da União Soviética e a efectiva transferência das forças militares da América para outros teatros ressuscitaram o medo atávico da Alemanha, que a partir de 1870 dominou a França. E, para evitar a repetição da I Guerra e das cenas de 1940, Mitterrand resolveu exigir o euro, que teoricamente evitaria uma nova hegemonia de Berlim. Mal preparado e mal pensado, o euro levou em pouco tempo ao resultado contrário: ao empobrecimento dos países mais fracos, da própria França ao nosso pindérico Portugal, e estabeleceu a Alemanha como a única potência económica e financeira da região – o que não deixa de a consolar e satisfazer e a conduziu a um isolamento pacato e certamente feliz, que não quer ver perturbado pelas raças inferiores do Sul e os seus sarilhos.
O acordo entre os socialistas do SPD e as tropas de Merkel revela bem o estado da Alemanha em 2013. O SPD conseguiu alguns limitados gestos a benefício da populaça mais pobre. Merkel conseguiu que não se mexesse no resto, nomeadamente na política europeia: nada de dívidas soberanas, nada de défices para esconder a miséria de cada um e, principalmente, nada de eurobonds para obrigar o contribuinte alemão a pagar a irresponsabilidade e a incúria de estranhos. O contribuinte alemão usará as suas poupanças para viver bem, embora modestamente, e para se passear no Verão por climas quentes, como de resto inteiramente merece. Do que Merkel mais gosta na Alemanha são janelas bem calafetadas. Chegou agora a altura de calafetar a Alemanha. Por aqui, nem a esquerda, nem a direita falaram disso. Continuam ainda em 1988.

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