Se estiverem a ler esta crónica é porque o mundo não acabou - e Portugal também não

José Manuel Fernandes Público, 21/12/2012
Depois de tanta previsão de convulsões sociais e de caos, o país está relativamente calmo. Por que será?
Poucas vezes terei estado tão confiante: a minha crónica para o dia em que o mundo devia acabar vai sobreviver. Porque poucas previsões terão sido tão aberrantes. Como notou um dia Einstein, não há limites para a estupidez humana. E menos ainda para a crendice ignorante, acrescento eu.
Passado o fim do mundo, talvez convenha notar que passaram também outras previsões apocalípticas. O euro, por exemplo, ainda não acabou. A Grécia também ainda não abandonou do euro, apesar de não terem sido poucas as mentes brilhantes que anunciaram a sua inexorável saída. E Portugal não mergulhou no caos político e social, como foi dito, previsto e desejado por tudo quanto se abeirou de um microfone ou pousou a mão numa caneta nestes últimos meses. De Januário Torgal Ferreira a Pacheco Pereira, passando pelo mais estridente de todos, Mário Soares, não têm faltado os profetas de um Portugal mergulhado em "convulsões sociais" e outras desgraças. Há mesmo quem ande a prevê-las há mais de dois anos, e nada. Que se passa? Que se passou?
Ao contrário dos planetas que afinal não estavam alinhados, do meteoro que afinal não caiu e do mundo que lá continuou a existir, todas as outras previsões esbarraram numa mesma realidade: em Atenas, em Bruxelas ou em Lisboa, o que se pode perder com rupturas precipitadas é muito mais do que porventura se poderia vir a ganhar. Antes a austeridade que a revolução.
Os gregos namoraram, é certo, o precipício. Em eleições que tiveram de ser repetidas estiveram muito perto de dar a maioria a um partido cuja vitória representaria, com enorme probabilidade, o fim da permanência da Grécia no euro. Em alternativa votaram nos partidos que iam continuar a negociar com os credores e aceitaram, com mais ou menos protestos, novos cortes e novos sacrifícios. Tudo porque perceberam que era melhor não arriscarem tudo numa espécie de roleta russa que atiraria o país para o desconhecido, e é fácil entender por que o fizeram: tinham muito a perder.
Se, há apenas dois anos, alguém dissesse que Portugal enfrentaria mais de 16% de desemprego, ninguém acreditaria. Se acrescentasse que isso sucederia sem revoltas e sem o povo na rua, chamar-lhe-iam louco e insensato. No entanto é isso que está a acontecer. Mais: a maioria dos funcionários públicos perdeu o equivalente a dois salários e não ocorreram as convulsões laborais; uma nova lei laboral foi aprovada e pouco contaram as convocatórias de greves gerais; até nas prestações dos reformados com pensões mais elevadas se mexeu sem que o Governo caísse. Que se passa? Que se passou?
Todos os dias nos anunciam o cataclismo final. A miséria insuportável. A explosão iminente. A crise fatal. Mas esse retrato não tem tradução nas ruas ou mesmo nos números, com uma importante excepção: o desemprego. Há poucos dias Mário Soares passou pela televisão para dizer que havia hoje mais miséria do que no tempo de Salazar, um disparate tão gritante que só permitiu encolher os ombros e tentar perdoar a amnésia e a cegueira. Mas um disparate que vai com um certo espírito dos tempos, tremendista e apocalíptico.
Para compreender o país é necessário começar por compreender algo essencial: há duas medidas para o sofrimento causado pela crise e pela austeridade, a medida dos que estão empregados ou reformados e a medida dos desempregados. Para além disso, entre os que estão no primeiro grupo, é importante recordar que os que menos recebem têm sido poupados. Quase 90 por cento dos pensionistas não sofreram nem sofrerão qualquer corte nas pensões. Não é por uma boa razão - é até por uma péssima razão, por receberem pensões muito baixas -, mas não deixa por isso de ser verdade. Da mesma forma os cortes na administração pública também pouparam e pouparão os salários mais baixos. Até os aumentos de IRS no próximo ano os vão deixar de fora, e sempre pela mesma má razão: são pobres ou remediadinhos. Se algo perturbou realmente a vida destes sectores da população, esse algo terá sido o desemprego de um familiar próximo, não os números do cheque no fim do mês.
Se os cortes de alguma forma pouparam a população com menores rendimentos, o desemprego funcionou em sentido contrário e perturbou a vida e as expectativas de todos os sectores da sociedade. De forma directa, a mais dramática, ou de forma indirecta. Sofre-se com o desemprego de um familiar, ou com a impossibilidade de um filho encontrar trabalho. Sofre-se com o medo de também ficar desempregado, o que induz alterações importantes nos padrões de consumo, estimulando a poupança para dias que podem revelar-se mais difíceis. Sofre-se também quando a pressão sobre o mercado de trabalho leva à redução dos salários.
Gostaria de conhecer estudos que permitissem relacionar os níveis de desemprego com os níveis de protesto social nas sociedades desenvolvidas, mas não conheço nenhum para Portugal. Suspeito porém que um dos dramas dos desempregados é estarem também sub-representados no universo sindical e serem dificilmente mobilizáveis. Não os vejo a encher as ruas, muito menos a erguerem barricadas. Agarram-se mais depressa à esperança de uma resposta positiva num centro de emprego.
Mas ao mesmo tempo que os desempregados vivem os seus dramas, o nível de ajuste dos restantes portugueses não parece ser tão dramático como por vezes o apresentam. Ainda esta semana, por exemplo, foram conhecidos números relativos ao consumo nas grandes superfícies, e por eles ficámos a saber que os cortes estão sobretudo a afectar os bens de consumo duradouro, isto é, electrodomésticos e automóveis. A evolução dos gastos com alimentação está quase em linha com a inflação, o que nos obriga a relativizar o discurso sobre "a miséria". Não trocar de carro, não comprar um frigorífico novo, adiar a compra do plasma ou não oferecer mais um playstation pelo Natal pode contrariar as expectativas que alimentámos nos últimos anos, mas não é um drama social (a não ser para os trabalhadores destes sectores do comércio).
Chegamos assim mais perto de perceber por que não ocorreram as "explosões sociais" tantas vezes anunciadas. É que uma coisa é a irritação por se sentirem as expectativas defraudadas - e essa irritação, num país como Portugal, permite um 15 de Setembro mas desautoriza um 14 de Novembro -, outra coisa bem diferente é o desespero de ver a vida a ruir. Ora esse é vivido sobretudo pelos desempregados, e é bom não esquecer como o desemprego é também uma solidão, com tudo o que isso significa.
Portugal não é a Grécia. Já escrevi e repito. Mas os portugueses são mais parecidos com os gregos do que às vezes parece. E, tal como os gregos, também eles sabem que, apesar de tudo, têm muito a perder. É também isso que os modera. Que os tem levado a aceitar a troika entre dois resmungos e um palavrão, mas sem irem mais longe. A não apoiarem os partidos que querem "romper com o memorando", partidos que apesar de tudo não sobem nas sondagens. E, também, a não acreditarem por aí além num caminho muito diferente, olhando para o PS com a desconfiança do gato escaldado e a convicção de que, se fosse governo, faria exactamente o contrário do que anda a gritar na oposição.
O Governo tem beneficiado desta relativa compreensão, e não creio que deixe de beneficiar quando chegar o recibo do vencimento de Janeiro, que com a diluição dos subsídios é capaz de não ser tão mau como isso. E tem beneficiado mesmo quando não tem merecido, o que é frequente. Mas a paciência não é eterna, sobretudo para os erros políticos. Uma coisa é a percepção de que há uma certa fatalidade económica nos cortes e na austeridade, outra a intolerância para com tudo o que leve a suspeitar de abusos ou compadrios, reais ou imaginários. É por isso que o Governo se desgasta mais com cada dia extra em funções de Miguel Relvas do que com cada imposto a mais de Victor Gaspar. Há sempre mais "um caso" a espreitar por trás do ministro adjunto, e cada um desses "casos" desgasta mais do que a pior execução orçamental. A sério.

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