"Caí hoje de manhã"

Caí hoje de manhã. Mesmo a chegar ao escritório, escorreguei na parte final da nossa perigosa calçada à portuguesa. Caí já dentro da rua, e, apesar do peso que levava, aterrei direita e de gatas, joelhos e mãos no chão (o que, visto a esta distância, deve querer dizer que tenho bons reflexos).
Caí numa das principais artérias de Lisboa, no coração da cidade. Atravessava a rua com o sinal verde para os peões, e vários carros estavam parados no semáforo a poucos metros de mim. A rua é movimentada, tem uma conhecida pastelaria mesmo na esquina, com uma esplanada onde alguns clientes tomavam a bica matinal. Refeita da surpresa, uns segundos no chão, e segura de que tudo estava no sítio, levantei-me o mais rápido que consegui, com receio de que, entretanto, os carros avançassem quando o sinal para eles ficasse verde. Nem uma só alma parou para me ajudar, ninguém abriu a janela do carro para perguntar se estava bem. Nem mesmo quando depois me sentei na esplanada para descansar um pouco me perguntaram como me sentia.
Talvez tenha sido tudo demasiado rápido. Talvez os clientes do café tenham tido receio que o dono julgasse que fugiam sem pagar; talvez os transeuntes tivessem decidido aguardar uns instantes a ver se eu me mexia sozinha; talvez os automobilistas estivessem demasiado concentrados na mudança do sinal, talvez até algum, crédulo de tantos emails assustadores, se tenha convencido de que se tratava de um embuste e de que, abandonado o carro para me socorrer, eu me enfiasse dentro dele e o levasse.
Ou simplesmente talvez um pouco de tudo isso tenha abafado nas almas da nossa cidade aquele impulso de auxílio que arrisca, o tremor do coração que se comove com a desgraça alheia, o instinto que é anterior a qualquer cautela.
Felizmente não sofri mais do que esfoladuras nos joelhos e nas mãos. Só a minha Filha, de quase cinco meses, que transporto já visivelmente na minha barriga, terá ouvido o meu coração chorar pela crueza desta cidade.
Inês Fonseca
20/12/2012

Comentários

Um próximo qq... disse…
Eu ajudava!

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António