Conto de Natal
João César das Neves
DN 2012-12-24
Não sei bem o que aconteceu. Foi uma espécie de ataque, que me atirou paralisado para esta cama de hospital. Ouvi há pouco o médico dizer à minha mulher que há hipóteses de eu sobreviver.
Ainda de manhã me levantei cheio de vigor e dinamismo, pleno de ocupações e projectos. Agora estou aqui, prostrado, inútil, vegetativo. Não sei o que foi, mas sei que não consigo falar nem mexer o lado direito. Tenho dores não sei bem onde. A minha tentativa de sorrir deu um esgar que assustou a enfermeira. Acabou tudo, mesmo que haja hipóteses de sobreviver. A minha vida, se ainda lhe posso chamar assim, mudou para sempre. Ou melhor, a vida que eu tinha acabou.Foi então que me lembrei da pergunta que decidira fazer sempre: "Senhor, o que é que Tu queres disto?" Foi há anos que, perante novidades e acasos que me sucedem, quis ver tudo a partir de Deus. Qual a atitude que Ele quer que eu tome agora? Esta pergunta salvou-me de muitas situações difíceis, onde a minha mesquinhez me ia meter em sarilhos. As coisas vistas de cima ficam muito diferentes. S. Paulo disse que "tudo concorre para o bem dos que amam a Deus" (Rm 8, 28). Do ponto de vista de Deus as coisas são sempre boas, belas, grandes. O Senhor do universo tem sempre uma saída, uma solução, um projecto grandioso ligado a tudo o que faz. O que é que o Senhor quer disto?
Aqui, mais até que nos problemas do emprego ou perplexidades de família, a pergunta parece fazer todo o sentido. Esta cama de hospital é tão inesperada e surpreendente que tem de ter uma razão. O Senhor podia ter-me levado, mas não levou. Não me quis levar. A minha vida acabou mas eu continuo aqui. Porquê? Devo ser preciso para algo. Ou isto tem lógica, ou então nada tem.
Mas que pode o Senhor querer de um paralítico? Qual a tarefa que me compete? O que pretende o Senhor disto? Ser testemunha d'Ele aqui, claro. O Senhor precisa agora de alguém neste sítio e mandou-me a mim. A resposta é a mesma que eu tinha ouvido tantas vezes: "Nada temas, continua a falar e não te cales, porque Eu estou contigo e ninguém porá as mãos em ti para te fazer mal, pois tenho um povo numeroso nesta cidade" (Act 18, 9-10). Ser sua testemunha aqui, paralítico na cama. É isso mesmo. Ainda me falta mais isso, antes de o Senhor me levar.
O meu sofrimento, paciência, alegria na adversidade testemunharão uma presença diferente. "Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me. Pois, quem quiser salvar a sua vida há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa há-de salvá-la" (Lc 9, 23-24). A minha cruz agora é a paralisia, as dores. Já foi o desemprego, a falência, o insulto, agora é a cama de hospital. Ligada à Mangedoura e Calvário é testemunha e presença salvadora, de mim e outros, neste sítio.
Mas como? Não consigo falar e mal me posso mexer. As visitas, doentes e pessoal do hospital não entendem o que penso, não ouvem o que digo, não percebem o que sinto. Não pode ser isso. Uma testemunha precisa de meios para testemunhar. Mesmo cheio de boas intenções e propósitos elevados, ninguém dará por eles. Quando ninguém ouve, como se pode ser apóstolo?
Então percebi. Um consegue ouvir-me. Para Ele falo. S. Inácio disse: "O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e mediante isto salvar a sua alma" (Exercícios Espirituais, 23). Nesta cama não tenho préstimo como servidor, nada posso dizer ou testemunhar, mas posso louvar e reverenciar o Senhor. Neste Natal devia haver falta de quem glorificasse a Deus neste canto do mundo, e por isso Ele me mandou vir. Para a harmonia do universo é preciso que alguém louve a divindade aqui, agora. É isso que o Senhor quer. Essa é a minha tarefa. A última tarefa da minha vida.
Louvar a Deus, paralítico mudo numa cama de hospital no tempo de Natal. Aquilo que os Anjos e os Santos fazem no Céu, que os coros fazem nas igrejas, que em todo o mundo se ouve nesta noite, eu tenho de o fazer aqui. Isso fará deste Natal o mais feliz da minha vida. O último.
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