As queixas dos reformados ricos e o fim da parceria entre gerações

José Manuel Fernandes
Público, 14/12/2012

Quando falamos em adiar juros e dívidas, será que não pensamos em quem terá de pagar tudo - os nossos filhos?
Abebe Selassie passou quarta-feira por Lisboa e disse duas coisas óbvias. A primeira que "não há nada de errado em ter um grande Estado social, só que este tem de ser financiado". Ou seja, que aquilo que podemos pedir em prestações sociais depende dos impostos que estivermos dispostos a pagar. A segunda foi que "Portugal é um dos países que gasta mais em pensões, mas tem uma das maiores proporções de idosos em risco de pobreza". Ou seja, que o nosso Estado social, não sendo pequeno, não é eficaz.
Vale a pena ver o significado destas afirmações à luz das estatísticas. Temos assim que, nos últimos dez anos, as receitas ordinárias do Estado oscilaram entre 39% e 42% do PIB. Em 2013 prevê-se que fiquem nos 42,3%, e todos sabemos o que isso significa de esforço fiscal. O problema é que, nestes mesmos dez anos, o peso das prestações sociais no PIB passou de 14% para 22% (previsão de 22,6% em 2013). Ou seja, um aumento de oito pontos percentuais. O resultado da diferença entre o ritmo de crescimento das despesas, sobretudo das despesas sociais, e o da nossa tolerância para pagar impostos traduziu-se no aumento exponencial da dívida pública. Se acrescentarmos as dívidas que ficaram de fora, como as associadas às PPP e as das empresas públicas, chegamos à profundidade dos nossos problemas.
O que se passou em Portugal com o crescimento da dívida pública não foi porém muito diferente daquilo que se passou em boa parte dos países ocidentais - só foi pior por causa das debilidades da nossa economia e da loucura de alguns governos. É por isso que, num livro recente, The Great Degeneration, o historiador Niall Ferguson considera que aquilo a que assistimos foi à actual geração de eleitores optar por viver à conta dos que ainda são demasiado novos para votar. As opções de despesa e de dívida representaram mesmo uma ruptura do pacto intergeracional, um pacto que tem mantido coesas as nossas sociedades. É que, como escreveu Edmund Burke, uma sociedade, um Estado, são no fundo o resultado "de uma parceria não só entre os que estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que já morreram e os que ainda não nasceram".
Lembrei-me destas palavras quando ouvi meio país (meio país? O país inteiro!) a pedir a aplicação a Portugal das medidas que foram decididas para a Grécia e que adiam o prazo de pagamento dos juros e dos empréstimos, atirando-os ainda mais para a frente, aliviando-nos um bocadinho no curto prazo mas sobrecarregando ainda mais os que terão de pagar tudo daqui por 15 ou 20 anos. E lembrei-me disso porque não é possível dizer, como era no passado, que estamos a deixar essas dívidas para os nossos filhos em nome de lhes deixarmos também um melhor futuro. Estamos é a fazê-lo apenas em nome do nosso presente, o resto são tretas.
Um outro bom exemplo deste egoísmo geracional é a forma como alguns dos nossos reformados mais abonados têm surgido na praça pública a defender a inconstitucionalidade da taxa de solidariedade do Orçamento de 2013. Já se sabe o que eu penso sobre a enormidade de impostos e taxas que vamos ter de pagar, mas isso não me impede de achar indecoroso que cidadãos responsáveis que beneficiaram de regimes de cálculo das suas pensões muito mais favoráveis do que todos os que ainda estão a trabalhar e muitíssimo mais favoráveis do que os que sobrarão para a geração dos seus filhos, se encarnicem tanto na defesa do que são os seus privilégios relativos. Quem os ouvir julgará que está a escutar defensores da maioria dos pensionistas, mas a verdade é que as sobretaxas de 10% (ou mais) apenas afectam as pensões acima dos 5030 euros, sendo que não haverá sequer cinco mil beneficiários nessas condições. Ou seja, estamos a falar de menos de 0,25 por cento do universo dos pensionistas. Tenham pois um pouco de pudor, sobretudo quando ao mesmo tempo sugerem uma melhor repartição dos sacrifícios.
Dito isto, não creio que estas sobretaxas sejam o caminho ideal e muito menos que permitam reformar o nosso sistema de pensões, que bem precisa. Mas também sei que o caminho a fazer não é só nosso e é bem difícil. Como escreve Niall Ferguson, "as democracias ocidentais desempenham hoje um papel tão grande na redistribuição de rendimentos que os políticos que defendem um corte de despesas têm quase sempre de enfrentar a oposição bem organizada de pelo menos um de dois grupos: os que recebem salários do Estado e os que recebem prestações do Estado". Isto significa que são os próprios mecanismos de decisão das democracias que estão em xeque - por um lado, a maioria dos eleitores de hoje dificilmente vota tendo em consideração os interesses dos eleitores de amanhã; por outro lado, mesmo quando isso sucede, as resistências dos sectores que beneficiam do actual status quo tende a transformar num inferno a vida dos políticos reformistas. Mesmo daqueles que têm sucesso nas reformas, como sucedeu com Gerhard Schroeder na Alemanha.
A ruptura do pacto intergeracional é contudo apenas um aspecto deste modo de viver com as dívidas crescentes e as obrigações sem limites dos sistemas de Segurança Social. O outro aspecto fundamental - e esse é precisamente o tema do livro de Ferguson - é a actual incapacidade de crescer das economias mais desenvolvidas. Portugal é apenas um caso extremo desta doença - a doença da "grande degenerescência", como lhe chama este historiador.
É por isso necessário enfrentar os problemas de frente: a nossa falta de crescimento tem também muito a ver com as opções imediatistas e confortáveis que as nossas democracias foram tomando. O "Estado social" tal como o conhecemos é apenas uma dessas opções, mas uma opção determinante, pois condiciona a forma como muitos cidadãos olham para democracia - vista apenas como uma democracia social - e contribuiu para a estagnação económica. Não resisto por isso a recordar algumas reflexões, quase com dois séculos, de um dos primeiros teóricos das democracias modernas, Alexis de Tocqueville. Refiro-me à sua reflexão, quase no final da sua obra seminal Democracia na América, sobre a forma como o despotismo do futuro brotaria da desvitalização da sociedade civil.
"Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, em busca de prazeres insignificantes e vulgares com que preenchem as suas almas", escreveu Tocqueville. "Cada um deles, colocando-se à parte, é como um estranho face ao destino dos outros; para ele, a espécie humana resume-se aos seus filhos e amigos", prossegue numa descrição que nos surge especialmente actual nesta semana em que tomámos conhecimento de novos casos de maus tratos de idosos. Depois, imaginava o político e pensador francês, "acima destes homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave". O poder totalitário? Nem por isso. Bem pode ser um poder democrático que "trabalha de boa vontade para assegurar a felicidade (...), garante a segurança, previne e satisfaz as necessidades, facilita os prazeres, dirige a indústria, regulamenta as sucessões, divide as heranças".
Tal poder, tal soberano, tal pesadelo para que a igualdade teria preparado os homens, abarcaria depois a sociedade inteira, cobrindo-a "com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão passar para se destacarem da multidão". A inerente servidão, que acalma e amena, também amolece (o termo é de Tocqueville) e embrutece.
É impossível não ver nesta descrição muito dos Estados modernos, e também dos "Estados sociais" centralizados, estatizados e uniformes, como o nosso é - mas como não seria um "Estado garantia", modelo de que já aqui falei várias vezes. No fundo, estas palavras de Tocqueville interpelam-nos porque nos obrigam a questionar onde nos levou a paixão da igualdade - e a sua irmã gémea, a inveja. Até porque um poder público que tudo regulamenta e de todos trata também produz um amolecimento que é inimigo da inovação, do risco e, por isso, do crescimento presente e futuro.

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