A dignidade na caridade e no trabalho
Carlos Carreiras, i-online 12 Dez 2012
Há um preconceito ideológico contra a caridade, que é amor, compromisso individual, e a extensão de nós no outro e na comunidade
“Não queremos caridade, queremos dignidade.” A mensagem, empunhada com vigor marxista por uma pequena manifestação da CGTP, dava as boas-vindas a todos os que tinham sido convidados para a inauguração do projecto Cozinha com Alma – a propósito, um fantástico projecto social de Cascais –, onde estive presente. As polémicas em torno das declarações de Isabel Jonet, que se seguiram pouco tempo depois, confirmaram o que esse slogan ortodoxo já me tinha sugerido na altura: que há um preconceito político, talvez até de classe, relativamente à palavra “caridade”. Na base desse preconceito está a convicção, errónea, de que a caridade é um projecto político. Desenganem--se. Logo no primeiro parágrafo da encíclica “Caritas in Veritate”, percebemos o que é a caridade: “O amor – ‘caritas’ – é uma força extraordinária que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz.” A caridade é amor, é compromisso individual, é a extensão de nós no outro e na comunidade. É liberdade e responsabilidade. A caridade é isto. Não é o seu contrário, como nos tentam impingir aqueles que, ironicamente, viram a mira contra si mesmos ao atacar a caridade por ser aquilo que eles abraçam incondicionalmente: um projecto político – só que, no caso, uma ideologia de supremacia do Estado em todos os domínios da vida individual e colectiva. Eles acreditam que sabem, mas não sabem que acreditam.
Mas o meu ponto é outro: a caridade, como valor social, é indispensável na nossa sociedade. Mais: a realidade com que nos confrontamos exige de cada um de nós mais e não menos caridade, para que possamos garantir ao maior número possível de cidadãos a dignidade na dificuldade. Ao contrário do que sugere a CGTP, caridade e dignidade não são valores antagónicos, nunca foram. Contudo, aceito que dignidade não se completa integralmente na realização da caridade. A dignidade exige, com a mesma força, caridade e trabalho. Porque o homem aperfeiçoa-se e descobre-se a si mesmo através do trabalho. Porque, em última análise, o trabalho é o produto da relação do homem com a natureza, é uma condição da existência humana e uma necessidade tão permanente que é o que distingue os homens dos animais. Talvez seja este um dos grandes desafios dos tempos modernos: como promover a ampla realização da dignidade humana se, apesar da caridade, não há trabalho? Entendo que cada novo desempregado não é apenas um número: é um futuro hipotecado ou um passado deitado fora; é uma dignidade ferida; é uma família destabilizada; é uma sociedade atacada. E isto leva-me à segunda questão: como podemos criar emprego numa Europa que entrou num rigoroso inverno demográfico, que se despistou na curva da produtividade e que está mergulhada numa profunda doença que de financeira passou a monetária e de monetária a económica e social?
As projecções recentes do Eurostat mostram que o desemprego na zona euro já toca 18,2 milhões de pessoas (11,6% da população activa) e que, se fizermos zoom out, em toda a União Europeia já há mais de 25 milhões de europeus sem trabalho. Isto mostra que aquilo a que alguns chamaram “arco da miséria” não vai apenas de Lisboa a Atenas: engoliu boa parte do continente. Talvez seja este o maior risco político que a União Europeia enfrenta quando os seus líderes se regozijam com o Prémio Nobel da Paz. Era bom que a Europa mantivesse razões para comemorar durante muitos anos. Seria sinal de que as fundações do prémio – tornar a guerra impossível na Europa – se mantiveram intactas. Temo que os líderes europeus não compreendam que poderá não haver nada para comemorar se as taxas de desemprego se mantiverem como estão. A Europa e Portugal precisam, mais do que nunca, de uma agenda positiva, precisam de ideias, de liderança, de consensos, de crescimento e de emprego. Precisam de tudo isto para alimentar a estabilidade política. E precisam que tudo isto seja feito a curto prazo porque, como dizia Alain Badiou esta semana ao i, é politicamente impossível fazer as coisas a longo prazo sem ter a consciência ideológica de que esse momento hoje não existe. Como podemos criar uma agenda para o emprego? É esse o desafio a que vou tentar dar resposta nos próximos artigos, olhando em particular o exemplo nacional.
Presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro
Há um preconceito ideológico contra a caridade, que é amor, compromisso individual, e a extensão de nós no outro e na comunidade
“Não queremos caridade, queremos dignidade.” A mensagem, empunhada com vigor marxista por uma pequena manifestação da CGTP, dava as boas-vindas a todos os que tinham sido convidados para a inauguração do projecto Cozinha com Alma – a propósito, um fantástico projecto social de Cascais –, onde estive presente. As polémicas em torno das declarações de Isabel Jonet, que se seguiram pouco tempo depois, confirmaram o que esse slogan ortodoxo já me tinha sugerido na altura: que há um preconceito político, talvez até de classe, relativamente à palavra “caridade”. Na base desse preconceito está a convicção, errónea, de que a caridade é um projecto político. Desenganem--se. Logo no primeiro parágrafo da encíclica “Caritas in Veritate”, percebemos o que é a caridade: “O amor – ‘caritas’ – é uma força extraordinária que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz.” A caridade é amor, é compromisso individual, é a extensão de nós no outro e na comunidade. É liberdade e responsabilidade. A caridade é isto. Não é o seu contrário, como nos tentam impingir aqueles que, ironicamente, viram a mira contra si mesmos ao atacar a caridade por ser aquilo que eles abraçam incondicionalmente: um projecto político – só que, no caso, uma ideologia de supremacia do Estado em todos os domínios da vida individual e colectiva. Eles acreditam que sabem, mas não sabem que acreditam.
Mas o meu ponto é outro: a caridade, como valor social, é indispensável na nossa sociedade. Mais: a realidade com que nos confrontamos exige de cada um de nós mais e não menos caridade, para que possamos garantir ao maior número possível de cidadãos a dignidade na dificuldade. Ao contrário do que sugere a CGTP, caridade e dignidade não são valores antagónicos, nunca foram. Contudo, aceito que dignidade não se completa integralmente na realização da caridade. A dignidade exige, com a mesma força, caridade e trabalho. Porque o homem aperfeiçoa-se e descobre-se a si mesmo através do trabalho. Porque, em última análise, o trabalho é o produto da relação do homem com a natureza, é uma condição da existência humana e uma necessidade tão permanente que é o que distingue os homens dos animais. Talvez seja este um dos grandes desafios dos tempos modernos: como promover a ampla realização da dignidade humana se, apesar da caridade, não há trabalho? Entendo que cada novo desempregado não é apenas um número: é um futuro hipotecado ou um passado deitado fora; é uma dignidade ferida; é uma família destabilizada; é uma sociedade atacada. E isto leva-me à segunda questão: como podemos criar emprego numa Europa que entrou num rigoroso inverno demográfico, que se despistou na curva da produtividade e que está mergulhada numa profunda doença que de financeira passou a monetária e de monetária a económica e social?
As projecções recentes do Eurostat mostram que o desemprego na zona euro já toca 18,2 milhões de pessoas (11,6% da população activa) e que, se fizermos zoom out, em toda a União Europeia já há mais de 25 milhões de europeus sem trabalho. Isto mostra que aquilo a que alguns chamaram “arco da miséria” não vai apenas de Lisboa a Atenas: engoliu boa parte do continente. Talvez seja este o maior risco político que a União Europeia enfrenta quando os seus líderes se regozijam com o Prémio Nobel da Paz. Era bom que a Europa mantivesse razões para comemorar durante muitos anos. Seria sinal de que as fundações do prémio – tornar a guerra impossível na Europa – se mantiveram intactas. Temo que os líderes europeus não compreendam que poderá não haver nada para comemorar se as taxas de desemprego se mantiverem como estão. A Europa e Portugal precisam, mais do que nunca, de uma agenda positiva, precisam de ideias, de liderança, de consensos, de crescimento e de emprego. Precisam de tudo isto para alimentar a estabilidade política. E precisam que tudo isto seja feito a curto prazo porque, como dizia Alain Badiou esta semana ao i, é politicamente impossível fazer as coisas a longo prazo sem ter a consciência ideológica de que esse momento hoje não existe. Como podemos criar uma agenda para o emprego? É esse o desafio a que vou tentar dar resposta nos próximos artigos, olhando em particular o exemplo nacional.
Presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro
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