Um regulamento para prevenir tentações?
Diário de Notícias, 2008102
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
Não pretendo fazer juízos morais - e nem sequer políticos - sobre o modo como foram atribuídos os fogos camarários. Escrevo estas linhas depois de ter lido um título de jornal que dizia que a câmara ia aprovar um regulamento para evitar tentações... Daqui se pode inferir que a importância que reveste para este Executivo a existência de regras claras para a atribuição e gestão da habitação municipal se reduz a uma medida preventiva de eventuais tentações. É espantoso.
Os fogos municipais constituem um dos mais importantes instrumentos de uma política pública de habitação. Havendo inúmeras necessidades sociais de habitação e sendo as casas um bem escasso, as regras tornam-se essenciais. Mas uma política de habitação não se esgota na atribuição de casas, mesmo de acordo com as melhores regras. Ela é, por sua vez, um instrumento privilegiado de correcção urbanística, permitindo agir sobre zonas mais envelhecidas captando população mais jovem, sobre freguesias mais desertificadas repovoando-as, sobre zonas mais segregadas socialmente aliviando a pressão, etc. Numa cidade, como Lisboa, que perde população e em que 65% dos seus activos vive na periferia e são obrigados a entrar e a sair todos os dias, uma política de habitação bem direccionada pode contribuir de forma decisiva para trazê-los de volta. É também para cumprir estes objectivos e fazer cidade que serve um regulamento.
Recordo-me que quando assumi o pelouro priorizei três tarefas: apurar os fogos com que podia contar, incluindo os do PER, os do designado "Património Disperso" e os das Cooperativas de Habitação protocoladas com a CML; estabelecer uma proposta de estratégia para a habitação municipal, tendo em conta as características de Lisboa e da sua população; elaborar os respectivos regulamentos.
Apesar das dificuldades em prosseguir com o levantamento patrimonial já em curso, foi possível obter dados suficientes para começar a trabalhar. A estratégia foi traçada tendo em conta, também, o Census de 2002: 25% dos munícipes têm mais de 65 anos, apenas 35% dos activos de Lisboa vivem no concelho e 50,1% dos lisboetas não auferem rendimentos de trabalho ou de qualquer actividade económica (pensionistas, beneficiários de prestações sociais diversas, etc...).
O regulamento, que chegou a ser agendado para discussão em sessão de câmara, denominava-se "Critérios gerais de atribuição e gestão de habitação municipal" e assentava nestas linhas de força: parametrização da carência habitacional, como modo de objectivar a atribuição; criação de regras de gestão, para combater a eternização na habitação municipal e disciplinar, sem complexos, a utilização abusiva de fogos; articulação com uma política de vendas coerente, considerando a habitação social como um período transitório e não um estatuto e propondo a criação de um fundo para a reabilitação de habitação municipal; articulação com a gestão do "património disperso" através da criação da bolsa de fogos.
Prepararam-se, entretanto, outros projectos de regulamento, sob a designação de "Habitação Inclusa", para responder a necessidades concretas de habitação da população lisboeta: reinserção social (por exemplo: ex-"sem-abrigo", ex-reclusos, famílias monoparentais, reunificação familiar de imigrantes legalizados, etc.), jovens residentes em Lisboa ou que aqui trabalham; residências assistidas para idosos isolados e a adaptação de pisos térreos para deficientes. Iniciou-se, também, a revisão do protocolo entre a CML e as cooperativas de habitação para uma maior eficácia e transparência.
A câmara caiu pouco depois mas este trabalho ficou lá. Foi o contributo da vereação do CDS/PP dado a Lisboa e aos lisboetas. Envolveu muito trabalho de excelentes técnicos como Hugo Nunes e Mário Rui (convictos servidores públicos), inúmeros contactos institucionais, audiências com o secretário de Estado da Habitação. Podia este Executivo atirá-lo, democraticamente, para o caixote do lixo ou aproveitá-lo; podia ter tido curiosidade e dar-lhe uma vista de olhos; podia ignorá-lo e fazer outro melhor. Não fez, mas vai fazê-lo agora e, ao que parece, para não caírem em tentação (!?)
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