Ainda sobre o casamento
Expresso, 20081011
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
Há dois grandes tipos de instituições construídas: as que são desenhadas intencionalmente, e as que emergem da interacção
A minha crónica da passada semana suscitou vários amáveis comentários, em regra críticos, de leitores - aos quais queria começar por agradecer. Quase todos manifestaram estranheza pela minha classificação do casamento como instituição espontânea. E quase todos observaram que as instituições sociais são construídas, não podendo por isso ser consideradas naturais.
Gostaria de recordar que usei a expressão ‘espontânea’, e não ‘natural’. Todas as instituições sociais são seguramente artefactos, são ‘construídas’ - e foi por isso mesmo que eu não disse que o casamento é uma instituição ‘natural’. Mas há dois grandes tipos de instituições construídas: as que são desenhadas intencionalmente, e as que emergem da interacção.
Esta é uma distinção em regra ignorada na cultura política da Europa continental. Mas é uma distinção crucial na cultura política anglo-americana, sobretudo inglesa. Foi particularmente estudada pelos iluministas escoceses, David Hume e Adam Smith, por exemplo, embora na verdade tivesse sido já trabalhada pela escolástica tardia, nomeadamente pela escola de Salamanca. No século XX, Friedrich Hayek retomou esta distinção, mas ela está presente em outros autores, como Michael Oakeshott e Karl Popper.
Uma instituição que emerge da interacção, e a que Hayek chama, talvez dando lugar a equívocos, espontânea, não resulta do planeamento ou da decisão particular de ninguém. Ela simplesmente acontece, como produto da interacção adaptativa das pessoas, das instituições e das gerações. O mercado, ou a troca, é um primeiro exemplo. As línguas nacionais realmente faladas pelas pessoas - em contraste com uma língua desenhada, como o esperanto - são outro exemplo. A família e o casamento heterossexual monogâmico são ainda outro exemplo de uma instituição que emerge descentralizadamente, sobretudo na cultura ocidental.
No século XVIII e até meados dos século XIX, era timbre da tradição liberal enaltecer e respeitar estas instituições espontâneas. Os jardins ingleses, não geométricos, eram contrastados com os franceses, obviamente desenhados centralmente. A Constituição inglesa, não escrita e evoluindo gradualmente, era tida como um exemplo de civilização. E o mesmo era dito de uma ordem social descentralizada, onde várias instituições coabitavam pacificamente sem ser necessário desenhá-las centralmente. A Universidade de Oxford ainda se orgulha de não saber ao certo a data da fundação, precisamente porque não foi centralmente desenhada, simplesmente emergiu.
Hoje, esta atitude caiu no esquecimento e é particularmente hostilizada pelos chamados progressistas. Penso que é uma perda lamentável. Mas ela não implica que as instituições espontâneas e descentralizadas deixem de existir.
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
Há dois grandes tipos de instituições construídas: as que são desenhadas intencionalmente, e as que emergem da interacção
A minha crónica da passada semana suscitou vários amáveis comentários, em regra críticos, de leitores - aos quais queria começar por agradecer. Quase todos manifestaram estranheza pela minha classificação do casamento como instituição espontânea. E quase todos observaram que as instituições sociais são construídas, não podendo por isso ser consideradas naturais.
Gostaria de recordar que usei a expressão ‘espontânea’, e não ‘natural’. Todas as instituições sociais são seguramente artefactos, são ‘construídas’ - e foi por isso mesmo que eu não disse que o casamento é uma instituição ‘natural’. Mas há dois grandes tipos de instituições construídas: as que são desenhadas intencionalmente, e as que emergem da interacção.
Esta é uma distinção em regra ignorada na cultura política da Europa continental. Mas é uma distinção crucial na cultura política anglo-americana, sobretudo inglesa. Foi particularmente estudada pelos iluministas escoceses, David Hume e Adam Smith, por exemplo, embora na verdade tivesse sido já trabalhada pela escolástica tardia, nomeadamente pela escola de Salamanca. No século XX, Friedrich Hayek retomou esta distinção, mas ela está presente em outros autores, como Michael Oakeshott e Karl Popper.
Uma instituição que emerge da interacção, e a que Hayek chama, talvez dando lugar a equívocos, espontânea, não resulta do planeamento ou da decisão particular de ninguém. Ela simplesmente acontece, como produto da interacção adaptativa das pessoas, das instituições e das gerações. O mercado, ou a troca, é um primeiro exemplo. As línguas nacionais realmente faladas pelas pessoas - em contraste com uma língua desenhada, como o esperanto - são outro exemplo. A família e o casamento heterossexual monogâmico são ainda outro exemplo de uma instituição que emerge descentralizadamente, sobretudo na cultura ocidental.
No século XVIII e até meados dos século XIX, era timbre da tradição liberal enaltecer e respeitar estas instituições espontâneas. Os jardins ingleses, não geométricos, eram contrastados com os franceses, obviamente desenhados centralmente. A Constituição inglesa, não escrita e evoluindo gradualmente, era tida como um exemplo de civilização. E o mesmo era dito de uma ordem social descentralizada, onde várias instituições coabitavam pacificamente sem ser necessário desenhá-las centralmente. A Universidade de Oxford ainda se orgulha de não saber ao certo a data da fundação, precisamente porque não foi centralmente desenhada, simplesmente emergiu.
Hoje, esta atitude caiu no esquecimento e é particularmente hostilizada pelos chamados progressistas. Penso que é uma perda lamentável. Mas ela não implica que as instituições espontâneas e descentralizadas deixem de existir.
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