Do Capital ao Kamasutra
Público, 14.10.2008, Helena Matos
O casamento entre pessoas do mesmo sexo gerou um entusiasmo na AR que contrastou vivamente com a indiferença cá fora
Durante os 55 dias em que Aldo Moro esteve sequestrado pelas Brigadas Vermelhas, os raptores submeteram-no a um julgamento revolucionário. Todos nós imaginamos que factos como este devem ocorrer em masmorras lúgubres, fortalezas mais ou menos inexpugnáveis ou locais remotos. Contudo, não foi nada disso que aconteceu entre 16 de Março e 9 de Maio de 1978: Aldo Moro esteve simplesmente fechado num apartamento de Roma, igual a milhares de outros e com vizinhos tão curiosos como quaisquer outros. No universo demencial que se instala entre as paredes daquela casa decorre, para lá do julgamento, cujo veredicto todos sabem que só pode ser a morte para Moro, uma conversa sobre ideologia e livros. Os sequestradores pretendiam que o primeiro-ministro italiano lesse autores marxistas para se esclarecer. Como é óbvio, Moro já os tinha lido.Há 30 anos não só se raptavam e executavam primeiros-ministros na Europa como as diversas interpretações do Capital marcavam a agenda. Hoje não sei se alguém lê Marx com o interesse que Aldo Moro e o seu carcereiro Mario Moretti lhe dedicaram, mas em termos de agenda O Capital deu lugar ao Kamasutra.Em Portugal, essa troca tornou-se particularmente evidente na passada semana, quando a Assembleia da República resolveu ocupar-se do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa matéria gerou um entusiasmo, entre deputados e jornalistas, entusiasmo esse que contrastou vivamente quer com a indiferença da população perante o assunto quer com a pasmaceira fatalista que impera na mesma AR nos momentos em que se discutem os rumos da política ou a crise económica.Afinal os ideólogos do Kamasutra são tão intolerantes quanto os do Capital mas já não querem mudar o sistema. Longe disso, pois vivem nele melhor que ninguém. Aliás, têm um fastio de aristocrata recente pelo povo. Os sindicatos causam-lhes neurastenia. Os problemas da insegurança irritam-nos como um quadro fora de sítio. E a educação é o seu desfile de moda e tendências. Já não disparam sobre quem quer que seja, embora perdoem muito facilmente quem o faz, mas precisam de alimentar as polémicas que os mantenham no lugar das pretéritas vanguardas. E é aí que chegamos às causas fracturantes. Qualquer coisa serve desde que sirva a necessidade de polémicas por parte de quem as patrocina. Algo que os ideólogos do Kamasutra aprenderam com os do Capital foi a importância do estereótipo. Aqueles que não estão de acordo com eles são inevitavelmente reaccionários e trogloditas. Quanto aos seus protegidos do momento, no caso os homossexuais, acabam transformados em personagens de propaganda ao melhor estilo da desaparecida revista Vida Soviética: são sempre felizes, vão amar-se para sempre e, se por acaso têm filhos, as criancinhas repetem para os jornalistas que adoram ter duas mães ou dois pais. Para que a felicidade seja total só falta a certidão de casamento. Das polémicas existentes nos diversos movimentos homossexuais sobre este e outros assuntos também não se fala. Os homossexuais da causa fracturante são seres unidimensionais como convém à propaganda.E para lá da propaganda o que sobra? Qual a expressão que estes casamentos poderão vir a ter em Portugal? Em Espanha, dois anos após a aprovação da lei tinham-se celebrado 2776 matrimónios entre homossexuais. Poucos, sem dúvida. E aqueles que no campo oposto querem fazer deste assunto uma causa também não são muitos: o Fórum da Família, com a estrutura da poderosa Igreja Católica espanhola por trás, apresentou um milhão de assinaturas a exigir um referendo sobre estes casamentos. Menos de metade daquelas que foram apresentadas pouco depois por um simples cidadão sem quaisquer hábitos destas lides, o pai de Mari Luz, assassinada por um pedófilo reincidente, a pedir um endurecimento das penas para os autores de crimes sexuais: 2.300.000 espanhóis apoiaram a sua petição, provavelmente a que mais apoio recebeu em Espanha.Não existe nada de estranho nesta disparidade numérica: independentemente daquilo que se pensa sobre a homossexualidade a verdade é que nas últimas décadas o casamento foi perdendo importância. Quando um dos protagonistas da performance em frente à AR declarou que vai continuar a ter a vida adiada por causa dum papel parece alguém que nos fala dum túnel do tempo passado. Na verdade, os portugueses casam-se cada vez menos: os avós viúvos já perceberam que têm grandes vantagens em juntar-se e não em casar-se, pois tal apego ao formalismo só os levaria a perder a reforma do seu defunto/a. Quanto aos netos, as experiências dos divórcios da geração dos seus pais e a paixão do fisco pelos celibatários leva-os a não associar automaticamente certidões a felicidade. Tanto mais que, para satisfazer o desejo de conciliação entre o melhor dos dois estados civis e também para contornar a questão dos casamentos homossexuais, os governos têm alargado o âmbito e as implicações das uniões de facto. Pese a simpatia nacional pela figura das uniões de facto, parece-me não só prepotente como fonte de inúmeros problemas esta opção paternalista de fazer de conta que se casa quem realmente não se casou. Daí que, na matéria do casamento entre pessoas do mesmo sexo, me reveja num projecto na linha do que foi apresentado pelos Verdes. Exactamente aquele que exclui aos casais homossexuais a possibilidade da adopção. Porque a questão que hoje se coloca já não é tanto o direito a casar mas sim quais os modelos de família que o Estado deve apoiar e em que medida é que as crianças, sobretudo as institucionalizadas, devem ser usadas para apoiar uns modelos e não outros. Como explica a própria documentação divulgada por alguns movimentos gay: "Queremos uma sociedade que reconheça a diversidade de modelos familiares com iguais oportunidades perante a lei. Porque a família é uma escolha livre dos indivíduos, lugar para a partilha de afectos e de vidas em comum e porque o Estado não pode privilegiar nenhum modelo em detrimento de todos os outros."Entre essa diversidade de modelos de família contam-se os homossexuais e os polígamos, um modelo de família que, ao contrário da homossexual, até visa fundamentalmente a reprodução e se pauta por ser estável e muitíssimo tradicional. Vamos entregar crianças para adopção às muitas famílias polígamas? Para não impor um modelo sexista optamos por falar de progenitores como faz a actual lei espanhola para não referir o masculino pai e a feminina mãe? Promover em pé de igualdade todos estes modelos "de partilha de afectos e de vidas em comum" nas aulas de Educação Cívica?Os promotores das causas fracturantes não deviam esquecer que enquanto, em Roma, Mario Moretti falava sobre marxismo com Aldo Moro, na Alemanha os filhos dos membros do já extinto Baader Meinhof começavam a não esquecer o que tinham vivido nos jardins de infância onde os seus pais tinham abolido as discriminações e os preconceitos da família burguesa. O resultado dessas memórias foi tão chocante quanto a imagem do cadáver de Aldo Moro atirado para a mala dum carro. Jornalista
O casamento entre pessoas do mesmo sexo gerou um entusiasmo na AR que contrastou vivamente com a indiferença cá fora
Durante os 55 dias em que Aldo Moro esteve sequestrado pelas Brigadas Vermelhas, os raptores submeteram-no a um julgamento revolucionário. Todos nós imaginamos que factos como este devem ocorrer em masmorras lúgubres, fortalezas mais ou menos inexpugnáveis ou locais remotos. Contudo, não foi nada disso que aconteceu entre 16 de Março e 9 de Maio de 1978: Aldo Moro esteve simplesmente fechado num apartamento de Roma, igual a milhares de outros e com vizinhos tão curiosos como quaisquer outros. No universo demencial que se instala entre as paredes daquela casa decorre, para lá do julgamento, cujo veredicto todos sabem que só pode ser a morte para Moro, uma conversa sobre ideologia e livros. Os sequestradores pretendiam que o primeiro-ministro italiano lesse autores marxistas para se esclarecer. Como é óbvio, Moro já os tinha lido.Há 30 anos não só se raptavam e executavam primeiros-ministros na Europa como as diversas interpretações do Capital marcavam a agenda. Hoje não sei se alguém lê Marx com o interesse que Aldo Moro e o seu carcereiro Mario Moretti lhe dedicaram, mas em termos de agenda O Capital deu lugar ao Kamasutra.Em Portugal, essa troca tornou-se particularmente evidente na passada semana, quando a Assembleia da República resolveu ocupar-se do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa matéria gerou um entusiasmo, entre deputados e jornalistas, entusiasmo esse que contrastou vivamente quer com a indiferença da população perante o assunto quer com a pasmaceira fatalista que impera na mesma AR nos momentos em que se discutem os rumos da política ou a crise económica.Afinal os ideólogos do Kamasutra são tão intolerantes quanto os do Capital mas já não querem mudar o sistema. Longe disso, pois vivem nele melhor que ninguém. Aliás, têm um fastio de aristocrata recente pelo povo. Os sindicatos causam-lhes neurastenia. Os problemas da insegurança irritam-nos como um quadro fora de sítio. E a educação é o seu desfile de moda e tendências. Já não disparam sobre quem quer que seja, embora perdoem muito facilmente quem o faz, mas precisam de alimentar as polémicas que os mantenham no lugar das pretéritas vanguardas. E é aí que chegamos às causas fracturantes. Qualquer coisa serve desde que sirva a necessidade de polémicas por parte de quem as patrocina. Algo que os ideólogos do Kamasutra aprenderam com os do Capital foi a importância do estereótipo. Aqueles que não estão de acordo com eles são inevitavelmente reaccionários e trogloditas. Quanto aos seus protegidos do momento, no caso os homossexuais, acabam transformados em personagens de propaganda ao melhor estilo da desaparecida revista Vida Soviética: são sempre felizes, vão amar-se para sempre e, se por acaso têm filhos, as criancinhas repetem para os jornalistas que adoram ter duas mães ou dois pais. Para que a felicidade seja total só falta a certidão de casamento. Das polémicas existentes nos diversos movimentos homossexuais sobre este e outros assuntos também não se fala. Os homossexuais da causa fracturante são seres unidimensionais como convém à propaganda.E para lá da propaganda o que sobra? Qual a expressão que estes casamentos poderão vir a ter em Portugal? Em Espanha, dois anos após a aprovação da lei tinham-se celebrado 2776 matrimónios entre homossexuais. Poucos, sem dúvida. E aqueles que no campo oposto querem fazer deste assunto uma causa também não são muitos: o Fórum da Família, com a estrutura da poderosa Igreja Católica espanhola por trás, apresentou um milhão de assinaturas a exigir um referendo sobre estes casamentos. Menos de metade daquelas que foram apresentadas pouco depois por um simples cidadão sem quaisquer hábitos destas lides, o pai de Mari Luz, assassinada por um pedófilo reincidente, a pedir um endurecimento das penas para os autores de crimes sexuais: 2.300.000 espanhóis apoiaram a sua petição, provavelmente a que mais apoio recebeu em Espanha.Não existe nada de estranho nesta disparidade numérica: independentemente daquilo que se pensa sobre a homossexualidade a verdade é que nas últimas décadas o casamento foi perdendo importância. Quando um dos protagonistas da performance em frente à AR declarou que vai continuar a ter a vida adiada por causa dum papel parece alguém que nos fala dum túnel do tempo passado. Na verdade, os portugueses casam-se cada vez menos: os avós viúvos já perceberam que têm grandes vantagens em juntar-se e não em casar-se, pois tal apego ao formalismo só os levaria a perder a reforma do seu defunto/a. Quanto aos netos, as experiências dos divórcios da geração dos seus pais e a paixão do fisco pelos celibatários leva-os a não associar automaticamente certidões a felicidade. Tanto mais que, para satisfazer o desejo de conciliação entre o melhor dos dois estados civis e também para contornar a questão dos casamentos homossexuais, os governos têm alargado o âmbito e as implicações das uniões de facto. Pese a simpatia nacional pela figura das uniões de facto, parece-me não só prepotente como fonte de inúmeros problemas esta opção paternalista de fazer de conta que se casa quem realmente não se casou. Daí que, na matéria do casamento entre pessoas do mesmo sexo, me reveja num projecto na linha do que foi apresentado pelos Verdes. Exactamente aquele que exclui aos casais homossexuais a possibilidade da adopção. Porque a questão que hoje se coloca já não é tanto o direito a casar mas sim quais os modelos de família que o Estado deve apoiar e em que medida é que as crianças, sobretudo as institucionalizadas, devem ser usadas para apoiar uns modelos e não outros. Como explica a própria documentação divulgada por alguns movimentos gay: "Queremos uma sociedade que reconheça a diversidade de modelos familiares com iguais oportunidades perante a lei. Porque a família é uma escolha livre dos indivíduos, lugar para a partilha de afectos e de vidas em comum e porque o Estado não pode privilegiar nenhum modelo em detrimento de todos os outros."Entre essa diversidade de modelos de família contam-se os homossexuais e os polígamos, um modelo de família que, ao contrário da homossexual, até visa fundamentalmente a reprodução e se pauta por ser estável e muitíssimo tradicional. Vamos entregar crianças para adopção às muitas famílias polígamas? Para não impor um modelo sexista optamos por falar de progenitores como faz a actual lei espanhola para não referir o masculino pai e a feminina mãe? Promover em pé de igualdade todos estes modelos "de partilha de afectos e de vidas em comum" nas aulas de Educação Cívica?Os promotores das causas fracturantes não deviam esquecer que enquanto, em Roma, Mario Moretti falava sobre marxismo com Aldo Moro, na Alemanha os filhos dos membros do já extinto Baader Meinhof começavam a não esquecer o que tinham vivido nos jardins de infância onde os seus pais tinham abolido as discriminações e os preconceitos da família burguesa. O resultado dessas memórias foi tão chocante quanto a imagem do cadáver de Aldo Moro atirado para a mala dum carro. Jornalista
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