‘Novus Ordo Seclorum’?
Miguel Monjardino
miguelmonjardino@gmail.com
Expresso, 20081011
O melhor exemplo foi o que aconteceu durante um enorme período na Fannie Mae e Freddie Mac, duas instituições altamente reguladas que sucumbiram à pressão política do Congresso para assumirem riscos excessivos. A verdadeira mensagem da crise de 2008 é, afinal, bastante antiga - o capitalismo precisa de governos, reguladores e tribunais competentes e activos.
Há muitas maneiras de começar uma semana. Comecei a minha a olhar com atenção para uma nota de um dólar. Na parte da frente está George Washington, o primeiro presidente dos EUA. No verso, no lado esquerdo, está uma pirâmide. Na base da pirâmide pode ler-se «Novus Ordo Seclorum». A expressão mostra bem a enorme ambição e optimismo que presidiu à fundação dos EUA em 1776. Nos duzentos e trinta e dois anos que se seguiram, o dólar tornou-se um dos grandes símbolos do poder ideológico dos EUA. As últimas semanas têm sido severas para a credibilidade de Washington. Com as dúvidas vem a sensação de que estamos a entrar numa nova idade em termos ideológicos. O que é que se está a passar?
A verdade é que estamos a viver um momento extremamente importante em termos de ideias políticas. A melhor maneira de ver isto é prestar atenção à forma como as pessoas falam e escrevem sobre coisas como o capitalismo, mercado, liberalismo e regulação. As três primeiras nunca foram populares em Portugal, algo que ajuda a explicar o contentamento público mais ou menos geral com as actuais dificuldades do capitalismo americano. O facto de Portugal, um país eternamente seduzido pelo poder do Estado e pela retórica socialista, ser mais desigual do que os EUA de George W. Bush não parece incomodar ninguém. Os partidários internacionais da ‘mão morta’ do Estado dizem-nos que a ‘mão invisível’ do capitalismo falhou de uma vez por todas e que agora não haverá regresso possível para o capitalismo.
Tudo isto levou-me a reler um livro publicado há dez anos por Daniel Yergin e Joseph Stanislaw - ‘The Commanding Heights. The Battle Between Government and the Marketplace that is Remaking the Modern World’ (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1998) - que relata os debates ideológicos entre os partidários do governo e do mercado durante o século XX. Tal como aconteceu nos últimos anos, os primeiros anos do século XX foram um período de ascensão para o capitalismo e os mercados. Depois tudo mudou. A história, primeiro, e depois a maré ideológica viraram e o resultado foi o fortalecimento do poder dos governos e das burocracias governamentais durante décadas.
Numa semana em que tudo nos é apresentado como novo e revolucionário em termos ideológicos, vale a pena relembrar as palavras de AJP Taylor, um grande historiador inglês, no final da Segunda Guerra Mundial: “Ninguém na Europa acredita no modo de vida americano - isto é, na empresa livre”. Na mesma altura, o prestígio ideológico e económico da URSS era enorme nos meios académicos, intelectuais e jornalísticos da Europa Ocidental e EUA. Estes dois pequenos factos mostram-nos duas coisas. A primeira é que os debates sobre o papel dos governos e dos mercados são tudo menos novos. A segunda é que a maneira como as pessoas avaliam o que está a acontecer nos mercados, empresas e nos seus dias tem uma enorme influência na direcção, conteúdo e resultado destes debates. Em 1998, no final de ‘Commanding Heights’, Yergin e Stanislaw chamaram a atenção para o seguinte: “De todos os perigos, talvez a maior ameaça ao novo consenso (sobre os benefícios da privatização e desregulação) e a confiança que o sustenta, surgiria de uma enorme perturbação do sistema financeiro internacional. Os mercados de capitais estão a crescer mais rapidamente do que a capacidade para os regular - ou mesmo de os compreender. A dimensão e o alcance dos mercados integrados a nível global cria riscos financeiros numa escala sem precedentes”.
Tendo isto presente, o que é que podemos e devemos esperar? A primeira coisa que vai acontecer tem que ver com a imagem e credibilidade dos EUA. As últimas semanas têm sido terríveis para ambas. A factura financeira e geopolítica do colapso da confiança nos mercados financeiros e bancos será quase de certeza substancial para Washington. A segunda coisa que vai acontecer é que, contra as expectativas de muita gente em Portugal, o capitalismo e o mercado não vão desaparecer. A actual crise financeira não vai levar o capitalismo para o caixote do lixo da história nem ressuscitar o socialismo e o colectivismo. O que vai, e isto é o terceiro ponto, é levar-nos a repensar a sério o papel do Governo, dos reguladores nos mercados e dos tribunais.
Uma das coisas que a actual crise mostra é que durante imenso tempo as instituições governamentais americanas e os respectivos reguladores não estiveram à altura. O melhor exemplo foi o que aconteceu durante um enorme período na Fannie Mae e Freddie Mac, duas instituições altamente reguladas que sucumbiram à pressão política do Congresso para assumirem riscos excessivos. A verdadeira mensagem da crise de 2008 é, afinal, bastante antiga - o capitalismo precisa de governos, reguladores e tribunais competentes e activos.
‘Plata o plomo’
Prata ou chumbo”, dizia-se em tempos aos polícias mexicanos na fronteira com os EUA. O México tem estado completamente ausente da campanha presidencial norte-americana. É difícil explicar esta omissão. O país tem actualmente mais de 100 milhões de pessoas, portos importantes virados para as Caraíbas e para o Pacífico e uma economia que tem crescido bastante nos últimos anos. Além disso, o país está no meio de uma enorme onda de violência. A guerra entre os traficantes de droga e o poder político já matou este ano três mil pessoas - a maior parte membros dos grupos traficantes e das forças de segurança. O assassínio de Salvador Vergara da Cruz, presidente da câmara de Ixtapan de la Sal, no fim-de-semana passado, mostra bem até que ponto as coisas chegaram no México.
Como é costume nestas coisas, há sempre algo que fica por contar. A mais importante é que o poder e a influência da ‘mão morta’ estatal, associados às suspeitas gerais em relação a coisas como o capitalismo, mercado e liberalismo, transformaram Portugal no país mais desigual da União Europeia. Esta é uma boa semana para relembrar que Portugal é mais desigual do que os EUA de George W. Bush.
miguelmonjardino@gmail.com
Expresso, 20081011
O melhor exemplo foi o que aconteceu durante um enorme período na Fannie Mae e Freddie Mac, duas instituições altamente reguladas que sucumbiram à pressão política do Congresso para assumirem riscos excessivos. A verdadeira mensagem da crise de 2008 é, afinal, bastante antiga - o capitalismo precisa de governos, reguladores e tribunais competentes e activos.
Há muitas maneiras de começar uma semana. Comecei a minha a olhar com atenção para uma nota de um dólar. Na parte da frente está George Washington, o primeiro presidente dos EUA. No verso, no lado esquerdo, está uma pirâmide. Na base da pirâmide pode ler-se «Novus Ordo Seclorum». A expressão mostra bem a enorme ambição e optimismo que presidiu à fundação dos EUA em 1776. Nos duzentos e trinta e dois anos que se seguiram, o dólar tornou-se um dos grandes símbolos do poder ideológico dos EUA. As últimas semanas têm sido severas para a credibilidade de Washington. Com as dúvidas vem a sensação de que estamos a entrar numa nova idade em termos ideológicos. O que é que se está a passar?
A verdade é que estamos a viver um momento extremamente importante em termos de ideias políticas. A melhor maneira de ver isto é prestar atenção à forma como as pessoas falam e escrevem sobre coisas como o capitalismo, mercado, liberalismo e regulação. As três primeiras nunca foram populares em Portugal, algo que ajuda a explicar o contentamento público mais ou menos geral com as actuais dificuldades do capitalismo americano. O facto de Portugal, um país eternamente seduzido pelo poder do Estado e pela retórica socialista, ser mais desigual do que os EUA de George W. Bush não parece incomodar ninguém. Os partidários internacionais da ‘mão morta’ do Estado dizem-nos que a ‘mão invisível’ do capitalismo falhou de uma vez por todas e que agora não haverá regresso possível para o capitalismo.
Tudo isto levou-me a reler um livro publicado há dez anos por Daniel Yergin e Joseph Stanislaw - ‘The Commanding Heights. The Battle Between Government and the Marketplace that is Remaking the Modern World’ (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1998) - que relata os debates ideológicos entre os partidários do governo e do mercado durante o século XX. Tal como aconteceu nos últimos anos, os primeiros anos do século XX foram um período de ascensão para o capitalismo e os mercados. Depois tudo mudou. A história, primeiro, e depois a maré ideológica viraram e o resultado foi o fortalecimento do poder dos governos e das burocracias governamentais durante décadas.
Numa semana em que tudo nos é apresentado como novo e revolucionário em termos ideológicos, vale a pena relembrar as palavras de AJP Taylor, um grande historiador inglês, no final da Segunda Guerra Mundial: “Ninguém na Europa acredita no modo de vida americano - isto é, na empresa livre”. Na mesma altura, o prestígio ideológico e económico da URSS era enorme nos meios académicos, intelectuais e jornalísticos da Europa Ocidental e EUA. Estes dois pequenos factos mostram-nos duas coisas. A primeira é que os debates sobre o papel dos governos e dos mercados são tudo menos novos. A segunda é que a maneira como as pessoas avaliam o que está a acontecer nos mercados, empresas e nos seus dias tem uma enorme influência na direcção, conteúdo e resultado destes debates. Em 1998, no final de ‘Commanding Heights’, Yergin e Stanislaw chamaram a atenção para o seguinte: “De todos os perigos, talvez a maior ameaça ao novo consenso (sobre os benefícios da privatização e desregulação) e a confiança que o sustenta, surgiria de uma enorme perturbação do sistema financeiro internacional. Os mercados de capitais estão a crescer mais rapidamente do que a capacidade para os regular - ou mesmo de os compreender. A dimensão e o alcance dos mercados integrados a nível global cria riscos financeiros numa escala sem precedentes”.
Tendo isto presente, o que é que podemos e devemos esperar? A primeira coisa que vai acontecer tem que ver com a imagem e credibilidade dos EUA. As últimas semanas têm sido terríveis para ambas. A factura financeira e geopolítica do colapso da confiança nos mercados financeiros e bancos será quase de certeza substancial para Washington. A segunda coisa que vai acontecer é que, contra as expectativas de muita gente em Portugal, o capitalismo e o mercado não vão desaparecer. A actual crise financeira não vai levar o capitalismo para o caixote do lixo da história nem ressuscitar o socialismo e o colectivismo. O que vai, e isto é o terceiro ponto, é levar-nos a repensar a sério o papel do Governo, dos reguladores nos mercados e dos tribunais.
Uma das coisas que a actual crise mostra é que durante imenso tempo as instituições governamentais americanas e os respectivos reguladores não estiveram à altura. O melhor exemplo foi o que aconteceu durante um enorme período na Fannie Mae e Freddie Mac, duas instituições altamente reguladas que sucumbiram à pressão política do Congresso para assumirem riscos excessivos. A verdadeira mensagem da crise de 2008 é, afinal, bastante antiga - o capitalismo precisa de governos, reguladores e tribunais competentes e activos.
‘Plata o plomo’
Prata ou chumbo”, dizia-se em tempos aos polícias mexicanos na fronteira com os EUA. O México tem estado completamente ausente da campanha presidencial norte-americana. É difícil explicar esta omissão. O país tem actualmente mais de 100 milhões de pessoas, portos importantes virados para as Caraíbas e para o Pacífico e uma economia que tem crescido bastante nos últimos anos. Além disso, o país está no meio de uma enorme onda de violência. A guerra entre os traficantes de droga e o poder político já matou este ano três mil pessoas - a maior parte membros dos grupos traficantes e das forças de segurança. O assassínio de Salvador Vergara da Cruz, presidente da câmara de Ixtapan de la Sal, no fim-de-semana passado, mostra bem até que ponto as coisas chegaram no México.
Como é costume nestas coisas, há sempre algo que fica por contar. A mais importante é que o poder e a influência da ‘mão morta’ estatal, associados às suspeitas gerais em relação a coisas como o capitalismo, mercado e liberalismo, transformaram Portugal no país mais desigual da União Europeia. Esta é uma boa semana para relembrar que Portugal é mais desigual do que os EUA de George W. Bush.
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