Saramago e a crise

Público, 19.10.2008, Vasco Pulido Valente

O que é a crise? O antigo director do Diário de Notícias, e presente Prémio Nobel, José Saramago respondeu ontem numa prosa reminiscente dos bons tempos do genial Estaline, quando o Avante! descrevia os camaradas desviacionistas ("titistas", se não me engano) a jogar fortunas no Casino do Estoril, enquanto as mulheres, cobertas de jóias, andavam em orgias por palacetes, espezinhando o povo trabalhador com a sua imoralidade e a sua soberba. Saramago é uma relíquia. A relíquia de um mundo que nos custa a acreditar que tivesse existido. Mas, mesmo assim, tal é a força do delírio que ainda nos consegue arrepiar. Sem saber que a personagem é hoje inócua e está num rochedo qualquer do Atlântico ninguém conseguia chegar ao fim. O fanatismo excede o tolerável.Para Saramago, a crise é um "crime contra a humanidade" tal qual como o genocídio, o etnocídio, os campos de morte, a tortura, o assassinato selectivo, a fome deliberadamente provocada, a poluição maciça ou a humilhação como método repressivo da identidade da vítima. Não vale a pena comentar esta lista, de que Lenine, lá no Céu de Saramago, com certeza não gostou. Basta perceber que na cabeça deste pensador não há diferença entre Auschwitz e o subprime ou entre o Gulag e a falência de um banco em Nova Iorque. E, como não há diferença, o homem quer castigos. Quer julgar e condenar os criminosos. Para impor a autoridade das regras? Para prevenir um episódio parecido? Para bem do sistema financeiro e, em última análise, da economia? De maneira nenhuma. Para "satisfação" da boa gente que sofre. Saramago não passa sem esse revolucionário gozo.Sobretudo, porque se convenceu (seguindo a louca doutrina do Comintern, muito em moda antes da II Guerra) que o capitalismo americano planeou e provocou "friamente" a crise, em "luxuosas salas de reunião" (que ele próprio viu no cinema), com "a cumplicidade efectiva ou tácita" do governo Bush. Isto, se calhar, podia parecer pura demência, se não se ajustasse tão perfeitamente à tradição e à linguagem da ortodoxia. Como o Avante! em 1940, Saramago não duvida que os culpados, enquanto a humanidade morre, se "deslocam em limusinas" (como era fatal) e vão jogar golfe. Um espectáculo que o irrita tanto mais que eles "são fáceis de apanhar". O intelectual do Ocidente sempre sonhou com a violência.

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