Ortodoxia secularista
Expresso, 20081018
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
Qual é a justificação do louvável princípio de que não devemos aceitar a imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro
Na semana passada, o professor de Princeton Robert P. George apresentou em Lisboa o seu livro ‘Choque de Ortodoxias: Direito, Religião e Moral em Crise’ (Tenacitas, 2008). Trata-se de um importante contributo para a reavaliação crítica de uma visão do mundo comummente associada à modernidade, sobretudo na sua versão europeia continental. O autor designa-a por “ortodoxia secularista”, definindo-a como a estrita separação entre a fé e o espaço público. Em termos gerais, Robert P. George contesta a crença ou convicção de que a liberdade e o pluralismo ocidentais assentam na chamada “neutralidade moral”.
Este ponto de vista “neutralista”, embora, em meu entender, equivocado, merece respeito e simpatia. A sua motivação é nobre e merece ser preservada. Reside ela na repulsa face à intolerância e à imposição arbitrária da vontade de uns indivíduos sobre outros. No entanto, do ponto de vista da abertura intelectual de Karl Popper, esta motivação não constitui razão suficiente para ignorar as reais fragilidades do “neutralismo”.
Em primeiro lugar, como explica Robert P. George, o neutralismo não consegue justificar-se a si mesmo. Qual é a justificação do louvável princípio de que não devemos aceitar a imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro? À luz do “neutralismo”, essa justificação terá de ser ainda moralmente neutra. Mas dificilmente pode sê-lo. Tem de haver alguma valorização moral da pessoa individual e da sua consciência para justificar a oposição à imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro.
Em segundo lugar, o “neutralismo” produz consequências ao nível das políticas públicas que nele se inspiram ou que dele abertamente se reclamam. Entre estas, está a chamada “desmoralização das políticas públicas” em nome da chamada “neutralidade moral”, sobre a qual existe hoje abundante evidência empírica.
Em terceiro lugar, o “neutralismo” pode conduzir a um novo tipo de dogmatismo intolerante. Confrontado com “ruídos” relativamente à sua teoria, isto é, com o desafio popperiano do teste e da refutação, o “neutralismo” tende a “blindar-se” contra o teste. Gera então a “ortodoxia secularista” de que fala Robert P. George: procura erigir-se em única doutrina oficial do Estado demo-liberal.
Estas três dificuldades apontam para a necessidade intelectual de questionar o “neutralismo”. Ele não pode erigir-se como o novo “horizonte intelectual insuperável da nossa época”, à semelhança do monopólio intelectual que, no passado recente, o marxismo reclamava. O recente livro de Robert P. George é um contributo maior para este necessário questionamento.
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
Qual é a justificação do louvável princípio de que não devemos aceitar a imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro
Na semana passada, o professor de Princeton Robert P. George apresentou em Lisboa o seu livro ‘Choque de Ortodoxias: Direito, Religião e Moral em Crise’ (Tenacitas, 2008). Trata-se de um importante contributo para a reavaliação crítica de uma visão do mundo comummente associada à modernidade, sobretudo na sua versão europeia continental. O autor designa-a por “ortodoxia secularista”, definindo-a como a estrita separação entre a fé e o espaço público. Em termos gerais, Robert P. George contesta a crença ou convicção de que a liberdade e o pluralismo ocidentais assentam na chamada “neutralidade moral”.
Este ponto de vista “neutralista”, embora, em meu entender, equivocado, merece respeito e simpatia. A sua motivação é nobre e merece ser preservada. Reside ela na repulsa face à intolerância e à imposição arbitrária da vontade de uns indivíduos sobre outros. No entanto, do ponto de vista da abertura intelectual de Karl Popper, esta motivação não constitui razão suficiente para ignorar as reais fragilidades do “neutralismo”.
Em primeiro lugar, como explica Robert P. George, o neutralismo não consegue justificar-se a si mesmo. Qual é a justificação do louvável princípio de que não devemos aceitar a imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro? À luz do “neutralismo”, essa justificação terá de ser ainda moralmente neutra. Mas dificilmente pode sê-lo. Tem de haver alguma valorização moral da pessoa individual e da sua consciência para justificar a oposição à imposição arbitrária da vontade de um indivíduo sobre outro.
Em segundo lugar, o “neutralismo” produz consequências ao nível das políticas públicas que nele se inspiram ou que dele abertamente se reclamam. Entre estas, está a chamada “desmoralização das políticas públicas” em nome da chamada “neutralidade moral”, sobre a qual existe hoje abundante evidência empírica.
Em terceiro lugar, o “neutralismo” pode conduzir a um novo tipo de dogmatismo intolerante. Confrontado com “ruídos” relativamente à sua teoria, isto é, com o desafio popperiano do teste e da refutação, o “neutralismo” tende a “blindar-se” contra o teste. Gera então a “ortodoxia secularista” de que fala Robert P. George: procura erigir-se em única doutrina oficial do Estado demo-liberal.
Estas três dificuldades apontam para a necessidade intelectual de questionar o “neutralismo”. Ele não pode erigir-se como o novo “horizonte intelectual insuperável da nossa época”, à semelhança do monopólio intelectual que, no passado recente, o marxismo reclamava. O recente livro de Robert P. George é um contributo maior para este necessário questionamento.
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