VIRTUDES ENLOUQUECIDAS
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
Diário de Notícias, 20081030
O imbróglio gerado com o Estatuto dos Açores vai ter desenvolvimentos muito para além das interpretações constitucionais. Por ser uma questão de Estado que tem a ver com o cerne das regras do edifício democrático, com órgãos de soberania, a separação de poderes, os equilíbrios fundamentais e perigosos e desnecessários precedentes. É certo que a questão é do foro parlamentar, mas depois de o primeiro-ministro ter calado a sua bancada no projecto de lei do casamento entre homossexuais não há dúvida que o voto socialista, no caso dos Açores, foi concertado por Sócrates.O que é que justificou criar uma situação destas num momento em que a crise aconselha uma boa relação institucional? Provavelmente a maioria absoluta do PS nos Açores - conseguida por apenas 300 votos de diferença do PSD -, que Sócrates quis transformar no sinal da sua própria dinâmica eleitoral em 2009. Porque nas Regiões Autónomas, diz-se, só tem maioria absoluta quem tiver uma questão com o poder central. E enquanto Jardim sempre afrontou os governos do seu partido, a César só restava o confronto com o Presidente. Estes raciocínios eleitoralistas não me chocariam se não estivesse em causa algo bem mais importante. O Presidente da República salvaguardou-se quando, ao não vetar pela segunda vez a Lei do Divórcio, estabeleceu uma clara diferença entre uma divergência política e uma questão de regime, sobrepondo, e bem, a segunda à primeira, com grande sentido de Estado. Sócrates, ao usar uma questão de Esta- do para fins eleitorais e abrindo uma crise institucional, cometeu um gra- ve erro político e revelou muito da sua maneira de ser.É que apesar de aspectos simpáticos como o seu optimismo e determinação - o que num país tendencialmente bisonho e conformado não deixa de ser assinalável - o primeiro-ministro já mal disfarça a sua propensão para um autoritarismo crescente, uma intolerância relativamente a tudo o que o contraria. A sua impaciência por não percebermos essa ideia de Portugal e dos portugueses, que ele criou e o norteia, esse desígnio, uma espécie de Escandinávia sulista, de não vermos o nosso próprio interesse, do qual ele se assume como principal representante, transmitindo a ideia da dispensabilidade das outras instâncias: os partidos são irresponsáveis uns, requentados outros; os corpos intermédios e as corporações, interesseiras; os críticos, pessimistas e mesquinhos.Este voluntarismo visionário, aliado à progressiva ocupação do espaço político, vai assumindo os contornos de um perigoso atestado de menoridade à sociedade no seu conjunto e de uma desvalorização das formas e fórmulas de qualquer democracia para a legítima manifestação das diferenças. E abusos de autoridade, como o recente caso da devassa mandada fazer pela Inspecção-Geral das Finanças a milhares de e-mails, ou as atitudes persecutórias a funcionários públicos, ou ainda os "lapsos" como o da alteração da Lei do Financiamento dos Partidos pela enviesada via da Lei do Orçamento, numa crescente impunidade.Dá que pensar ser este o mesmo primeiro-ministro que capitulou frente aos camionistas que ocuparam um eixo rodoviário estratégico e confessou que "... sentiu o Estado vulnerável..." não percebendo que o Estado nunca é vulnerável; ele, Sócrates, é que o foi. O mesmo que teve medo da rua aquando da megamanifestação dos professores. O mesmo que remodelou o Governo depressa e mal para pôr termo à mediatização do descontentamento.É nesta contradição - entre um discurso exclusivo e sem princípio do contraditório, e a hesitação nos momentos de verdadeiro confronto organizado - demonstrada ao longo da sua governação, que se revela muito da personalidade de Sócrates. A que se soma agora o preocupante sinal da instrumentalização leviana de uma questão de Estado e de regime com meros fins eleitoralistas. E a previsão do que nos espera se lhe derem outra maioria...
Jurista
Diário de Notícias, 20081030
O imbróglio gerado com o Estatuto dos Açores vai ter desenvolvimentos muito para além das interpretações constitucionais. Por ser uma questão de Estado que tem a ver com o cerne das regras do edifício democrático, com órgãos de soberania, a separação de poderes, os equilíbrios fundamentais e perigosos e desnecessários precedentes. É certo que a questão é do foro parlamentar, mas depois de o primeiro-ministro ter calado a sua bancada no projecto de lei do casamento entre homossexuais não há dúvida que o voto socialista, no caso dos Açores, foi concertado por Sócrates.O que é que justificou criar uma situação destas num momento em que a crise aconselha uma boa relação institucional? Provavelmente a maioria absoluta do PS nos Açores - conseguida por apenas 300 votos de diferença do PSD -, que Sócrates quis transformar no sinal da sua própria dinâmica eleitoral em 2009. Porque nas Regiões Autónomas, diz-se, só tem maioria absoluta quem tiver uma questão com o poder central. E enquanto Jardim sempre afrontou os governos do seu partido, a César só restava o confronto com o Presidente. Estes raciocínios eleitoralistas não me chocariam se não estivesse em causa algo bem mais importante. O Presidente da República salvaguardou-se quando, ao não vetar pela segunda vez a Lei do Divórcio, estabeleceu uma clara diferença entre uma divergência política e uma questão de regime, sobrepondo, e bem, a segunda à primeira, com grande sentido de Estado. Sócrates, ao usar uma questão de Esta- do para fins eleitorais e abrindo uma crise institucional, cometeu um gra- ve erro político e revelou muito da sua maneira de ser.É que apesar de aspectos simpáticos como o seu optimismo e determinação - o que num país tendencialmente bisonho e conformado não deixa de ser assinalável - o primeiro-ministro já mal disfarça a sua propensão para um autoritarismo crescente, uma intolerância relativamente a tudo o que o contraria. A sua impaciência por não percebermos essa ideia de Portugal e dos portugueses, que ele criou e o norteia, esse desígnio, uma espécie de Escandinávia sulista, de não vermos o nosso próprio interesse, do qual ele se assume como principal representante, transmitindo a ideia da dispensabilidade das outras instâncias: os partidos são irresponsáveis uns, requentados outros; os corpos intermédios e as corporações, interesseiras; os críticos, pessimistas e mesquinhos.Este voluntarismo visionário, aliado à progressiva ocupação do espaço político, vai assumindo os contornos de um perigoso atestado de menoridade à sociedade no seu conjunto e de uma desvalorização das formas e fórmulas de qualquer democracia para a legítima manifestação das diferenças. E abusos de autoridade, como o recente caso da devassa mandada fazer pela Inspecção-Geral das Finanças a milhares de e-mails, ou as atitudes persecutórias a funcionários públicos, ou ainda os "lapsos" como o da alteração da Lei do Financiamento dos Partidos pela enviesada via da Lei do Orçamento, numa crescente impunidade.Dá que pensar ser este o mesmo primeiro-ministro que capitulou frente aos camionistas que ocuparam um eixo rodoviário estratégico e confessou que "... sentiu o Estado vulnerável..." não percebendo que o Estado nunca é vulnerável; ele, Sócrates, é que o foi. O mesmo que teve medo da rua aquando da megamanifestação dos professores. O mesmo que remodelou o Governo depressa e mal para pôr termo à mediatização do descontentamento.É nesta contradição - entre um discurso exclusivo e sem princípio do contraditório, e a hesitação nos momentos de verdadeiro confronto organizado - demonstrada ao longo da sua governação, que se revela muito da personalidade de Sócrates. A que se soma agora o preocupante sinal da instrumentalização leviana de uma questão de Estado e de regime com meros fins eleitoralistas. E a previsão do que nos espera se lhe derem outra maioria...
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