A rasteira que estava escondida no Orçamento

Público, 23.10.2008, José Manuel Fernandes

O Governo tentou fazer aprovar, à boleia do OE, uma "oportuna" alteração à lei de financiamento dos partidos (2009 é ano de eleições) que fazia regressar a opacidade onde, apesar de tudo, a lei em vigor impunha alguma transparência
O Ministério das Finanças produziu ontem de manhã um extraordinário comunicado. Apanhado "com a boca na botija" pelo Diário Económico, que revelava o modo como, sub-reptícia, traiçoeira e manhosamente, a Lei do Orçamento do Estado para 2009 alterava a lei do financiamento dos partidos (em ano eleitoral...), a assessoria de imprensa, noutras ocasiões muda e queda (como na véspera, em que não respondeu às perguntas daquele jornal), precipitou-se. E atirou-se a uma piscina sem água. E que disse ela, em nome do ministro Teixeira dos Santos? Primeiro, que "o que se pretende alterar com o artigo 133º da Proposta de Lei do OE/2009 é o referencial de fixação dos montantes legalmente previstos para o financiamento público ou privado dos partidos políticos, que deixa de ser o salário mínimo nacional e passará a ser o indexante de apoios sociais (IAS)", ou seja, algo absolutamente inócuo.Depois, que "relativamente aos donativos de natureza pecuniária feitos por pessoas singulares, estes continuam a ser obrigatoriamente depositados em contas bancárias, exclusivamente destinadas para esse efeito, e nas quais só podem ser efectuados depósitos que tenham esta origem". Por outras palavras: o ministério começou por mentir sobre o alcance da alteração legal e, depois, eventualmente na esperança de que todos fôssemos tolos, fingiu que tudo continuava na mesma, quando tudo ficava diferente. Hoje, na página 4, reproduzimos o texto da lei em vigor sobre financiamento partidário e o que nela seria alterado pela proposta de Orçamento. Não é preciso ser jurista, basta saber ler português, para perceber que desaparecia um dos elementos nucleares da lei de 2003 (a tal época negra que o Governo se esforça por apagar e destruir): a proibição de os partidos receberem donativos em dinheiro. Este ponto é absolutamente central. De acordo com a lei de 2003, e que entrou em vigor em 2005, todas as contribuições para os partidos, para além de estarem limitadas no seu montante máximo, têm de ser realizadas por cheque ou por transferência bancária. Porquê? Porque assim sabe-se quem doou e quem recebeu. Tanto o cheque como a transferência bancária deixam rasto - as doações em dinheiro vivo não. O facto de serem depositadas numa conta especial nada muda, pois é sabido que qualquer pessoa pode depositar dinheiro de um terceiro na conta que entender. Com esta alteração legislativa, feita à socapa, sem frontalidade e embrulhada nas mentiras do comunicado matinal do Ministério das Finanças, deixava-se de poder traçar o rasto do dinheiro, ou seja, de poder um dia saber se um doador generoso teria ou não sido beneficiado por uma decisão do partido que financiara. Goste-se ou não, a verdade é que a corrupção grassa onde há falta de transparência e mirra onde esta existe. A corrupção vive da opacidade, e era a opacidade que regressava de forma ínvia com a proposta incluída no Orçamento do Estado.E, garante-vos, sei do que falo: como réu num processo movido ao PÚBLICO por ter denunciado o que se passava na Câmara de Felgueiras, acompanhei, no tribunal local, o testemunho de alguns protagonistas que, sem corarem ou darem sinais de arrependimento, reconheceram ter sido naquela terra prática habitual passar maços de notas embrulhadas em jornais no átrio dos Paços do Concelho. Foi um dos dias mais deprimentes mas também mais reveladores da minha vida, pelo que não posso ter qualquer dúvida sobre o significado de voltar a autorizar, mesmo que de forma disfarçada, as doações em dinheiro vivo, o que não tem cheiro nem deixa rasto. Felizmente que, em Portugal, ainda há jornais e jornalistas que não desistiram de ser vigilantes, e a marosca veio a público. O que espanta é, depois dos pareceres categóricos recolhidos pelo Diário Económico junto de pessoas como o fiscalista Saldanha Sanches ou Mouraz Lopes, do Grupo de Estudos contra a Corrupção, o ministro e o ministério tenham insistido no logro e tentado fazer crer que era, apenas, uma questiúncula do PSD. Infelizmente, para eles, o socialista João Cravinho - o que se cansou de tentar fazer aprovar pelo seu partido uma lei decente de prevenção e combate à corrupção - também não teve dúvidas. Pelo que acabou por surgir o inevitável recuo, que ainda estamos para saber como se irá realmente processar. P.S. Da mesma forma que o Diário Económico cumpriu o seu papel, ou que António José Teixeira foi à SIC explicar o que estava em causa, a RTP produziu, sobre a matéria, uma peça que, sob o diáfano véu do pluralismo e do princípio de dar voz às duas partes, nada permitia perceber, pois em nenhum momento disse o que estabelece a lei e o que se propunha no Orçamento. Terá cumprido os critérios da ERC, mas não fez mais do que contribuir para a mistificação que, desde a manhã, o acossado Ministério das Finanças tentava manter de pé.

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