Não deitem foguetes antes de verem quem vai a enterrar

Público, 15.10.2008, Rui Ramos

Ninguém inventou um mecanismo tão eficiente como o sistema financeiro para suportar os riscos de socializar a riqueza

A classe que entre nós tem como missão dar opiniões correctas nunca faz as coisas por pouco: para quê uma "crise financeira", quando se pode imaginar a "morte do capitalismo"? Ainda me lembro da última vez que o capitalismo morreu. Foi em 1987. Dois anos depois, houve um grande funeral: mas - surpresa - quem ia na urna não era Hayek e o capitalismo, mas Marx e o socialismo soviético. Também me lembro da outra vez antes dessa em que o capitalismo morreu: foi em 1975. Quatro anos depois, Thatcher e Reagan eram eleitos e começava o declínio do "consenso social-democrata" do pós-guerra. Nos últimos quarenta anos, tem sido assim: sempre que passam a certidão de óbito ao capitalismo, quem vai a enterrar são os outros. Por isso, talvez não seja despropositado recomendar moderação aos que já festejam mais esta notícia da sua morte. Tal como na proverbial primeira notícia sobre o falecimento de Mark Twain, talvez haja algum exagero.
Nas últimas semanas, disseram-nos para não confiarmos no mercado. Mas não foi por isso que passámos a confiar no Estado. Veja-se a dificuldade que os legisladores e governantes americanos e ingleses tiveram para convencer os investidores acerca das vantagens dos seus resgates e garantias. De resto, o Estado e as suas "autoridades" desempenharam nesta história o papel de um bombeiro suspeito. O mercado de capitais sempre foi uma das dimensões mais regulamentadas da economia. Se passou os limites, foi porque alguém o deixou passar, e não porque funcionasse no estado de natureza.
Esse tem sido, de resto, o aspecto mais fascinante desta "crise". Toda a gente diz coisas severas sobre o sistema financeiro. E toda a gente anda a tentar manter vivo o prevaricador. A razão que nos é dada para tanto esforço e gasto é singelamente prática: todos precisamos de crédito e de preservar as nossas poupanças. A verdadeira razão é outra: o que nós queremos salvar é o nosso modo de vida, que só o mercado de capitais tornou possível.
Ouvir-nos a nós, os cidadãos endividados do Ocidente, a maldizer os excessos dos nossos bancos é como ouvir Dr. Jekyll a dizer mal de Mr. Hyde. O sistema financeiro perdeu-se pelos caminhos dos hedge funds para nos permitir a todos vivermos acima das nossas posses. E é para que continuemos a viver ainda um bocadinho assim que agora os Estados se propõem "resgatá-lo". Porque ainda ninguém conseguiu inventar outro mecanismo tão eficiente como este para suportar os riscos de socializar a riqueza e fazer experiências com ela. Às vezes, os aprendizes de feiticeiro queimam-se - e queimam-nos. Mas ninguém, no fundo, os quer ver desistir. Que seria de nós se, como antigamente, tivéssemos de poupar para comprar um carro - ou o Estado, para construir um aeroporto?
E como o objectivo é fazer as coisas voltar a ser o que eram, o que temos ouvido dos governos ocidentais não são pragas contra o capitalismo, mas exorcismos do socialismo. À direita, claro, mas também à esquerda. Os trabalhistas ingleses recusam-se a admitir que vão "nacionalizar" os bancos: vão apenas "investir". E já avisaram que até esperam "lucros". O Estado regulador e investidor não quer ser proprietário. Mudam-se os tempos - mas alguma coisa mudou nos últimos quarenta anos que, como no soneto de Camões, não está a mudar agora.
E àqueles que esperam pelo menos deixar de ouvir falar de orçamentos equilibrados, uma recomendação: não esperem tanto. Os "investimentos" nos bancos até podem um dia dar lucro. Mas, entretanto, é dinheiro que faltará para outras coisas. E se houver recessão, aumentar impostos não será um projecto popular. A necessidade de o Estado encolher não vai acabar. Haverá talvez alguma tolerância no imediato, mas sem excessos, porque ninguém quer percorrer a via-sacra da inflação da década de 1970. Por cá, são as obras públicas que correm o risco de ficar a seco. Nos EUA, o pobre Obama já começou a fazer contas tristes com a sua ideia de um serviço nacional de saúde.
O corrente Estado social, com os seus serviços universais e o nível de prestações a que nos habituámos, não começou com a "crise do capitalismo" na década de 1930. O Estado social expandiu-se, depois da II Guerra Mundial, com o comércio e o sistema financeiro global. Se a "globalização" fraquejar, rezem por este Estado social. Aquilo que os "neoliberais" nunca conseguiram enquanto o capitalismo esteve vivo, talvez aconteça se ele "morrer" mais uma vez. Mas calma: na segunda-feira, o Dow Jones registou a maior subida num só dia desde 1929.

Historiador

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