A crise e a cultura do instantâneo
Expresso, 20081028
Henrique Monteiro
hmonteiro@expresso.pt
Ser imediato, responder no momento, obter tudo em pouco tempo, comprar primeiro e pagar depois são hoje lugares-comuns. Mas o caminho que fizemos até aqui negou uma das bases da nossa cultura: o deferimento da recompensa
Na tentativa habitual de encontrar culpados para a actual crise, esquecemos muitas vezes as causas remotas, ou quase indetectáveis, do autêntico circo financeiro que lhe deu origem.
Ora, é bom compreender o fenómeno como um modo de tentar evitar erros semelhantes.
A causa da crise assenta, sob muitos aspectos, em razões sociológicas. Não só por aquilo que Raymond Plant recentemente escreveu (afastámo-nos da virtude, disse ele, e o nosso afastamento das religiões ou filosofias que a pregavam também é causa da crise), mas porque a própria vida actual nos empurrou - a todos ou quase - para uma ideia que, vista hoje, é preocupante: a convicção de que a poupança, ou que amealhar para o futuro não faz qualquer sentido.
Para tal não contribuiu apenas uma razão, mas dezenas delas. E, desde logo, ideias generosas e que fazem sentido - refira-se a da garantia das reformas pelo Estado - assim como ideias duvidosas, «vide» as do crédito imediato concedido pelo telefone.
A enorme diferença é que há uns anos, não mais do que duas gerações, as famílias aforravam para a velhice, porque sabiam que não haveria outros apoios senão os familiares. E, quando se era novo, trabalhava-se para atingir um objectivo, fosse ele casar, comprar casa, ter um carro ou fazer férias especiais.
Hoje confia-se no Estado para assegurar reformas (ainda que a confiança nos últimos anos tenha baixado). Quando não é no Estado é num PPR, que por sua vez entrou, na maioria dos casos, no mesmo circo financeiro que os bancos. Já quanto aos bens, como automóveis, casas ou férias, o sistema desde há 50 anos que nos aconselha a comprá-los primeiro e pagá-los depois. Tudo junto, é todo um programa contra a poupança.
O contrário do aforro é o endividamento. E quando todo o sistema assenta na dívida podemos ter colapsos destes.
Mas há causas para a ideia ser tão popular. O afastamento das filosofias e das religiões que pregam a virtude leva ao afastamento da ideia do deferimento da recompensa. Este conceito assenta na necessidade de trabalho, ou de sacrifício, antes de se alcançar o bem (ou o paraíso).
Hoje a recompensa tem de ser imediata e anteceder o trabalho ou sacrifício necessários à sua obtenção. Por isso, os créditos são imediatos, como o são as recompensas. Tudo se pode ter já, a cultura do instantâneo domina. O tempo das maturações, próprio das sociedades agrícolas, passou.
É por isso que é tão redutor culpar um sistema ou uma teoria. Quase tudo na nossa vida contribuiu para a actual crise.
Henrique Monteiro
hmonteiro@expresso.pt
Ser imediato, responder no momento, obter tudo em pouco tempo, comprar primeiro e pagar depois são hoje lugares-comuns. Mas o caminho que fizemos até aqui negou uma das bases da nossa cultura: o deferimento da recompensa
Na tentativa habitual de encontrar culpados para a actual crise, esquecemos muitas vezes as causas remotas, ou quase indetectáveis, do autêntico circo financeiro que lhe deu origem.
Ora, é bom compreender o fenómeno como um modo de tentar evitar erros semelhantes.
A causa da crise assenta, sob muitos aspectos, em razões sociológicas. Não só por aquilo que Raymond Plant recentemente escreveu (afastámo-nos da virtude, disse ele, e o nosso afastamento das religiões ou filosofias que a pregavam também é causa da crise), mas porque a própria vida actual nos empurrou - a todos ou quase - para uma ideia que, vista hoje, é preocupante: a convicção de que a poupança, ou que amealhar para o futuro não faz qualquer sentido.
Para tal não contribuiu apenas uma razão, mas dezenas delas. E, desde logo, ideias generosas e que fazem sentido - refira-se a da garantia das reformas pelo Estado - assim como ideias duvidosas, «vide» as do crédito imediato concedido pelo telefone.
A enorme diferença é que há uns anos, não mais do que duas gerações, as famílias aforravam para a velhice, porque sabiam que não haveria outros apoios senão os familiares. E, quando se era novo, trabalhava-se para atingir um objectivo, fosse ele casar, comprar casa, ter um carro ou fazer férias especiais.
Hoje confia-se no Estado para assegurar reformas (ainda que a confiança nos últimos anos tenha baixado). Quando não é no Estado é num PPR, que por sua vez entrou, na maioria dos casos, no mesmo circo financeiro que os bancos. Já quanto aos bens, como automóveis, casas ou férias, o sistema desde há 50 anos que nos aconselha a comprá-los primeiro e pagá-los depois. Tudo junto, é todo um programa contra a poupança.
O contrário do aforro é o endividamento. E quando todo o sistema assenta na dívida podemos ter colapsos destes.
Mas há causas para a ideia ser tão popular. O afastamento das filosofias e das religiões que pregam a virtude leva ao afastamento da ideia do deferimento da recompensa. Este conceito assenta na necessidade de trabalho, ou de sacrifício, antes de se alcançar o bem (ou o paraíso).
Hoje a recompensa tem de ser imediata e anteceder o trabalho ou sacrifício necessários à sua obtenção. Por isso, os créditos são imediatos, como o são as recompensas. Tudo se pode ter já, a cultura do instantâneo domina. O tempo das maturações, próprio das sociedades agrícolas, passou.
É por isso que é tão redutor culpar um sistema ou uma teoria. Quase tudo na nossa vida contribuiu para a actual crise.
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