Serão os jornalistas responsáveis pela actual crise dos mercados?
Público, 17.10.2008, José Manuel Fernandes
Onde se fala do valor intangível da "confiança", da importância das virtudes sociais e do capital social de uma sociedade e também de James Dean e da lógica que levou os banqueiros até ao precipício
Em privado, muitos economistas não escondem alguma irritação: boa parte da responsabilidade da actual crise e da volatilidade dos marcados financeiros é culpa dos jornalistas. Foram as suas notícias alarmistas, os seus títulos catastrofistas, que geraram a onda de pânico que abalou as bolsas e fez cair banco atrás de banco.É certo que, por muito que custe admiti-lo aos economistas, a economia não é uma ciência exacta. E talvez nem seja sequer tão exacta como a resultante das centenas, ou milhares, de títulos e notícias que foram difundidas nas últimas semanas. Acreditar que foi a imagem da realidade transmitida pelos jornalistas que criou a crise é tão infantil como culpar uma bruxa por um terramoto: não resiste à análise dos factos, mesmo que seja imensa, até descomunal, a quantidade de disparates que possam ter sido escritos ou lidos por jornalistas ao longo desta crise.Houve corrida aos depósitos bancários por cidadãos comuns assustados pelo último noticiário televisivo? Não, não houve. Houve venda de acções em perda total por parte dos profissionais que têm acesso a toda a informação on-line e não se deixam influenciar pelo último título de um tablóide? Sim, houve. E a explicação para este comportamento diferenciado é simples: os "profissionais" perderam a confiança num sistema que já nem sequer conseguem perceber muito bem como funciona; os aforradores comuns estão por enquanto mais assustados do que activos e, apesar de tudo, ainda não perderam a confiança num sistema político e económico que tem funcionado mais ou menos bem (mas mais bem do que mal) nas últimas décadas. A palavra-chave neste breve diagnóstico é "confiança". Nos mercados financeiros criou-se o hábito de utilizar instrumentos tão sofisticados e complexos que o feitiço da multiplicação infinita da riqueza se virou contra os feiticeiros. Nos mercados sociais e políticos, por onde andam os cidadãos comuns e onde é maior a influência da comunicação social, ainda se continua a perceber que há regras - nomeadamente as regras formais da democracia que não perderam o seu prazo de validade e que é possível aos cidadãos trocarem de "administrador executivo", se este não estiver à altura dos acontecimentos. Ora um dos aspectos fulcrais que diferenciam os mercados financeiros dos "mercados políticos" é que os primeiros funcionam a curto prazo e os segundos combinam formas de pressão instantâneas (as oscilações da opinião pública) com a avaliação do desempenho escalonada no tempo, isto é, com ciclos eleitorais mais ou menos longos.Parece um detalhe, ou mesmo uma comparação disparatada, mas não é. Aquilo que permitiu a consolidação das democracias abertas e liberais como os melhores sistemas de governo foi a coexistência de elementos como o momento de avaliação dos governantes conhecido com antecedência, a omnipresença da liberdade de crítica, o balanceamento do poder e a possibilidade algum diferimento no tempo entre a altura em que se tomam as decisões e aquela em que estas são avaliadas em eleições livres.Em contrapartida, os mercados financeiros entraram, nos últimos anos, num ciclo que não pode ser correctamente definido como correspondendo a uma "economia de casino" ou ao "reinado da ganância" (sempre houve ganância no mundo dos negócios, como sempre houve atracção pelo abuso de poder no mundo da política), mas deve antes ser analisado à luz da quebra de uma das regras que permitiu o sucesso do capitalismo: a de que se deve trabalhar duro e dar tempo ao tempo. Ou, utilizando uma formulação mais sofisticada, a regra da "compensação diferida", isto é, a regra de que não devo esperar resultados imediatos antes estar preparado para os receber mais tarde, ou mesmo para só os receberem os meus filhos.Estas regras implicam princípios éticos que não se coadunam nem com a ideia do sucesso "já" (a ideia de ter tudo "já" é uma ideia infantil a que o mundo dourado dos anos 60 deu o lustre da reivindicação revolucionária), nem com a pressão para obter bons resultados trimestralmente de forma a agradar aos mercados bolsistas. Neste novo mundo misturaram-se yuppies deslumbrados com a riqueza ao virar de cada esquina, investidores incapazes de compreenderem a cultura e os planos a médio (ou longo) prazo das empresas e consumidores que, perante um mundo de facilidades onde todos pareciam ganhar, também gastaram ontem o que não sabiam se iam ter amanhã.Desta forma se foi desgastando, esperemos que não de forma fatal, o capital social de sociedades onde antes a confiança e a "palavra" valiam e onde hoje tudo exige ou exércitos de advogados ou legiões de burocratas vigilantes e castradores. Mais: como isso sucedeu sobretudo entre os que estavam na engrenagem, entre os que admitem que mesmo sabendo que iam chocar contra uma parede persistiam numa louca corrida para o abismo em tudo semelhante à celebrizada no filme de James Dean Rebel without a Cause, acabou por arrastar os banqueiros e gestores mais prudentes, todos eles desafiados a apresentar resultados "já" e também quase todos eles protegidos por contratos milionários destinados a evitar o destino de Buzz, o rival de Dean, quando o carro se precipitou no abismo.Por isso, talvez mais do que culparem os jornalistas pelo "pânico", ou pela falta de confiança nos mercados, esses desorientados economistas devessem estudar como foi possível que ao volante das empresas e dos mercados se tivessem colocado demasiadas figuras com a agressividade de um Buzz, ou frágeis como Jim Stark (o personagem encarnado por James Dean), pois todos eles, pressionados por consumidores ávidos por bens (como no filme os adolescentes estavam ávidos por emoções fortes), não souberam travar antes do abismo.
Onde se fala do valor intangível da "confiança", da importância das virtudes sociais e do capital social de uma sociedade e também de James Dean e da lógica que levou os banqueiros até ao precipício
Em privado, muitos economistas não escondem alguma irritação: boa parte da responsabilidade da actual crise e da volatilidade dos marcados financeiros é culpa dos jornalistas. Foram as suas notícias alarmistas, os seus títulos catastrofistas, que geraram a onda de pânico que abalou as bolsas e fez cair banco atrás de banco.É certo que, por muito que custe admiti-lo aos economistas, a economia não é uma ciência exacta. E talvez nem seja sequer tão exacta como a resultante das centenas, ou milhares, de títulos e notícias que foram difundidas nas últimas semanas. Acreditar que foi a imagem da realidade transmitida pelos jornalistas que criou a crise é tão infantil como culpar uma bruxa por um terramoto: não resiste à análise dos factos, mesmo que seja imensa, até descomunal, a quantidade de disparates que possam ter sido escritos ou lidos por jornalistas ao longo desta crise.Houve corrida aos depósitos bancários por cidadãos comuns assustados pelo último noticiário televisivo? Não, não houve. Houve venda de acções em perda total por parte dos profissionais que têm acesso a toda a informação on-line e não se deixam influenciar pelo último título de um tablóide? Sim, houve. E a explicação para este comportamento diferenciado é simples: os "profissionais" perderam a confiança num sistema que já nem sequer conseguem perceber muito bem como funciona; os aforradores comuns estão por enquanto mais assustados do que activos e, apesar de tudo, ainda não perderam a confiança num sistema político e económico que tem funcionado mais ou menos bem (mas mais bem do que mal) nas últimas décadas. A palavra-chave neste breve diagnóstico é "confiança". Nos mercados financeiros criou-se o hábito de utilizar instrumentos tão sofisticados e complexos que o feitiço da multiplicação infinita da riqueza se virou contra os feiticeiros. Nos mercados sociais e políticos, por onde andam os cidadãos comuns e onde é maior a influência da comunicação social, ainda se continua a perceber que há regras - nomeadamente as regras formais da democracia que não perderam o seu prazo de validade e que é possível aos cidadãos trocarem de "administrador executivo", se este não estiver à altura dos acontecimentos. Ora um dos aspectos fulcrais que diferenciam os mercados financeiros dos "mercados políticos" é que os primeiros funcionam a curto prazo e os segundos combinam formas de pressão instantâneas (as oscilações da opinião pública) com a avaliação do desempenho escalonada no tempo, isto é, com ciclos eleitorais mais ou menos longos.Parece um detalhe, ou mesmo uma comparação disparatada, mas não é. Aquilo que permitiu a consolidação das democracias abertas e liberais como os melhores sistemas de governo foi a coexistência de elementos como o momento de avaliação dos governantes conhecido com antecedência, a omnipresença da liberdade de crítica, o balanceamento do poder e a possibilidade algum diferimento no tempo entre a altura em que se tomam as decisões e aquela em que estas são avaliadas em eleições livres.Em contrapartida, os mercados financeiros entraram, nos últimos anos, num ciclo que não pode ser correctamente definido como correspondendo a uma "economia de casino" ou ao "reinado da ganância" (sempre houve ganância no mundo dos negócios, como sempre houve atracção pelo abuso de poder no mundo da política), mas deve antes ser analisado à luz da quebra de uma das regras que permitiu o sucesso do capitalismo: a de que se deve trabalhar duro e dar tempo ao tempo. Ou, utilizando uma formulação mais sofisticada, a regra da "compensação diferida", isto é, a regra de que não devo esperar resultados imediatos antes estar preparado para os receber mais tarde, ou mesmo para só os receberem os meus filhos.Estas regras implicam princípios éticos que não se coadunam nem com a ideia do sucesso "já" (a ideia de ter tudo "já" é uma ideia infantil a que o mundo dourado dos anos 60 deu o lustre da reivindicação revolucionária), nem com a pressão para obter bons resultados trimestralmente de forma a agradar aos mercados bolsistas. Neste novo mundo misturaram-se yuppies deslumbrados com a riqueza ao virar de cada esquina, investidores incapazes de compreenderem a cultura e os planos a médio (ou longo) prazo das empresas e consumidores que, perante um mundo de facilidades onde todos pareciam ganhar, também gastaram ontem o que não sabiam se iam ter amanhã.Desta forma se foi desgastando, esperemos que não de forma fatal, o capital social de sociedades onde antes a confiança e a "palavra" valiam e onde hoje tudo exige ou exércitos de advogados ou legiões de burocratas vigilantes e castradores. Mais: como isso sucedeu sobretudo entre os que estavam na engrenagem, entre os que admitem que mesmo sabendo que iam chocar contra uma parede persistiam numa louca corrida para o abismo em tudo semelhante à celebrizada no filme de James Dean Rebel without a Cause, acabou por arrastar os banqueiros e gestores mais prudentes, todos eles desafiados a apresentar resultados "já" e também quase todos eles protegidos por contratos milionários destinados a evitar o destino de Buzz, o rival de Dean, quando o carro se precipitou no abismo.Por isso, talvez mais do que culparem os jornalistas pelo "pânico", ou pela falta de confiança nos mercados, esses desorientados economistas devessem estudar como foi possível que ao volante das empresas e dos mercados se tivessem colocado demasiadas figuras com a agressividade de um Buzz, ou frágeis como Jim Stark (o personagem encarnado por James Dean), pois todos eles, pressionados por consumidores ávidos por bens (como no filme os adolescentes estavam ávidos por emoções fortes), não souberam travar antes do abismo.
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