Silêncio não é sobre apostasia, mas sobre inculturação

FILIPE D'AVILLEZ     WWW.ACTUALIDADERELIGIOSA.BLOGSPOT.COM     25.01.17

Transcrição integral da entrevista que o Filipe fez ao padre e missionário Adelino Ascenso, que passou mais de uma década no Japão e fez a sua tese de doutoramento sobre a teologia da obra literária de Shusaku Endo. 

Tem havido várias críticas a dizer que o filme, e por conseguinte o livro, Silêncio é um exercício de justificação da apostasia. Era essa a intenção de Endo?
Não, de forma nenhuma. 

Endo foi acusado precisamente de defender a apostasia, quando publicou o livro em 1966. E houve até algumas dioceses onde os prelados não permitiram a leitura desse livro aos católicos, ou aconselharam a que não lessem. Eu creio que foi uma interpretação errada da mensagem que o Endo quis transmitir.

O Shusaku Endo tinha uma grande preocupação. Naturalmente a maior preocupação era a sua própria fé. Ter aquele “fato” ocidental que não se adaptava bem ao seu corpo japonês, como ele o define, mas tendo esse problema com a sua fé, que é sempre uma busca, uma luta. Ele em relação aos “Kakure Kirishitan”, os cristãos ocultos, tinha uma simpatia muito grande. Estes Kakure, que renunciaram à sua fé, apostataram visivelmente, mesmo que fosse só um pró-forma, muitos deles mantiveram-se fiéis ao Cristianismo ao longo de 250 anos, durante as perseguições e em total isolamento, sem sacerdotes, sem nada. Eram os leigos que os orientavam, que baptizavam os filhos e que passavam as orações de geração em geração, ao longo de 250 anos. 

Shusaku Endo tinha uma grande simpatia pelos descendentes desses cristãos ocultos e achava que havia aqui um silêncio, o “silêncio” do título do livro.

Mas o título do livro não é só o silêncio de Deus, porque quase sempre se fala só no silêncio de Deus, o Rodrigues que se interroga porque é que aqueles cristãos estão a ser martirizados e Deus está de braços cruzados em silêncio e não age. Claro que aí está o problema da teodiceia, portanto o problema da existência de Deus omnipotente e do mal no mundo, aí está um problema, sim, mas não é só esse silêncio, ele preocupava-se com o silêncio da Igreja-instituição, relativamente a esses cristãos ocultos, que tinha renunciado à sua fé, que tinham apostatado, mas que no seu coração continuavam a acreditar e continuavam com os seus ritos, com as suas orações, e a transmitir essas orações. Shusaku Endo tinha uma grande preocupação relativamente a este silêncio. 

Ele quis, com esse livro, realçar não só o forte, porque o forte é o mártir, aquele que não renuncia à sua fé, não apostata e que é martirizado, mas também defender o fraco, o cobarde, o débil, aquele que, não aguentando a dor, ou por compaixão pelos outros, acaba por apostatar. Digamos que há uma dicotomia. A Igreja-instituição, valorizou sempre muito os mártires, mas esqueceu-se desses pobres que, tendo apostatado, eram escorraçados pelos outros e eram desprezados pelos outros. 

Por um lado, em “Silêncio” vemos exemplos de tremenda fé por parte dos japoneses, mas também críticas de que o Cristianismo não pode lançar raízes no Japão. O termo usado é “pântano”. Acredita que é essa a opinião de Endo?
Não era a convicção de Endo, era a preocupação do Endo. 

Desde que ele foi baptizado aos 10 anos, e principalmente depois, passados cinco ou dez anos, em que ele começou a reflectir sobre a sua fé e o que significava ser cristão e ser japonês, que ele notou que havia um abismo entre o Ocidente e o Oriente. O Cristianismo era a religião do ocidente, e ele era um oriental, japonês. Então ele tentou sempre, desde o início, procurar um caminho de conciliar esses dois mundos, o Oriente e o Ocidente.

Com Silêncio ele conseguiu, não totalmente, mas o facto de o próprio Rodrigues, e já lá iremos, o próprio ter apostatado – e sobre a apostasia podemos falar depois – ter sido um estrangeiro no Japão a apostatar nesse pântano que é o Japão, significa que houve uma aproximação à mentalidade japonesa, houve uma tentativa de inculturação por parte do Rodrigues. Digamos que houve uma conversão do Rodrigues depois da sua apostasia. O apostatar, para o Rodrigues, tem a ver com a inculturação, com um processo de inculturação. Nesse sentido, Endo conseguiu uma aproximação entre o Oriente e o Ocidente, que ele depois desenvolveria mais tarde noutras obras de ficção.

Como é que caracteriza o Catolicismo de Endo? Pode-se dizer que ele é típico de um católico japonês?
Penso que o Catolicismo de Endo, a fé de Endo, é referência para os cristãos que buscam e que pensam e que sentem a luta da fé no dia-a-dia. 

Porque estamos a falar de um país em que os cristãos são 1% da população, onde os católicos são cerca de 0,3% da população. Onde muitas vezes numa única família de muitos membros há uma única pessoa católica ou protestante. E isto implica um diálogo permanente com os outros membros da família, uma luta permanente, um luta permanente na tentativa de inculturar esses elementos cristãos dessa religião estrangeira, de forma a que a pessoa não seja colocada num mundo diferente daquele do resto da família. E nesse sentido Endo é o ponto de referência para os cristãos que buscam, reflectem e que procuram um caminho de entrosamento. Um caminho de diálogo e encontro.


Quando diz que há famílias com apenas um cristão, estamos a falar de conversões mais recentes. Entre os descendentes dos Kakure Kirishitan que sobreviveram há famílias inteiras que se mantiveram fiéis, que vivem integradas no Japão, ou formam uma sociedade à parte?
Por aquilo que me foi proporcionado ver há algumas comunidades descendentes precisamente desses Kakure, sobretudo na região de Nagasaki. Há uma região a Norte de Nagasaki, que se chama Sotome, que é onde está o monumento ao silêncio, e onde está também o museu literário de Shusaku Endo, e que foi o palco do “Silêncio”.

Há aí umas ilhas que se denominam Goto, onde a população ainda orienta toda a sua vida de acordo com a Igreja. Isto é, a igreja ainda é o ponto aglutinador. As crianças vão para a escola, mas a caminho passam pela igreja. Aí sim, essas comunidades mantêm essa tradição religiosa cristã, desde esses tempos, século XVI e XVII.

Mas por exemplo em Osaka, onde eu estive, há umas montanhas, perto da paróquia onde estive a trabalhar os últimos anos, onde se refugiaram alguns Kakure que vieram de Nagasaki, e aí ainda há alguns sinais, mas muito diluídos. Depois, na própria cidade de Osaka e no resto do Japão, o Cristianismo está muito diluído na sociedade. 

Agora, há um aspecto interessante... Uma vez encontrei um japonês em Coimbra, ainda eu não estava no Japão, e eu perguntei como era o Cristianismo no Japão. E ele disse que o Cristianismo no Japão compreendia cerca de 30% da população. Fiquei muito surpreendido e lembrei-me que devia haver um erro de cálculo. 

Mas é curioso que cerca de 30% da população japonesa, não digo 30%, tem valores que nós podemos considerar cristãos. O cristianismo – Igreja Católica, protestante e ortodoxa – têm escolas, universidades, jardins-de-infância, hospitais, lares de terceira idade, etc. Têm muitas instituições onde transmitem esses valores. Por exemplo, nos jardins-de-infância as crianças são ensinadas a rezar. Esses valores ficam com a criança mesmo que não se converta ao cristianismo. Portanto o cristianismo é uma percentagem mínima, está muito entrosado na cultura e na sociedade japonesa e, penso eu, que há muitos valores que podemos considerar cristãos e que estão alicerçados no próprio contexto japonês.

Então não concorda com essa frase, de que o Japão é um pântano para o cristianismo... 
Não concordo, mas concordo com a expressão do Endo. Aí está, precisamente. O cristianismo, como tinha sido, ou como foi ao longo dos tempos, transportado para o Japão como uma religião estrangeira, com esse Cristo estereotipado, um Cristo ocidental, que se transporta simplesmente para o Japão, dessa forma, cai num pântano. E nesse sentido eu estou de acordo.

Mas não estou de acordo que o cristianismo no Japão tenha que cair nesse pântano. Se não, não tinha estado no Japão. Tem de haver esse processo, esse exercício permanente de inculturação. E foi o que o Endo tentou fazer.

As missões actuais, a Igreja actual no Japão, tem feito essa inculturação? Ou ainda há caminho por fazer?
Há muito caminho por fazer. Há muito caminho por fazer e eu creio que o sucesso aqui, principalmente no Japão, não se mede por números. Porque basta dizer que os cristãos japoneses, ou os católicos japoneses da actualidade, são cerca de 400 mil, e isto é um número irrisório, e não há um aumento progressivo dos convertidos ao cristianismo. Portanto há um longo caminho a fazer. Mas eu penso que o caminho mais importante a fazer é esse do exercício constante, permanente, da inculturação. 

Saiu um livro muito interessante e muito importante, publicado pela Conferência Episcopal Japonesa, aliás, pela secção de Diálogo Inter-religioso, que foi depois traduzido para inglês e para português, que é um compêndio sobre como um cristão, católico, deve agir perante situações numa sociedade que não é católica.

Por exemplo, se um católico é o único elemento da família e se há um membro da família que morre e que tem um funeral budista, se o católico pode participar no funeral; se participa, como deve participar?. Isto é muito importante. Os funerais são muito importantes não é propriamente o culto dos antepassados, mas há uma influência do confucionismo, que valoriza precisamente o culto dos antepassados. 


Quando diz participar presumo que não seja só marcar presença, mas ter uma parte activa...
Pois, exactamente, aí está a parte mais delicada. Porque se um católico vai participar num funeral de uma celebração budista, não pode participar activamente. Quero dizer, se participar activamente na recitação dos sutras, usando o rosário budista, então está a fazer algo que é uma fachada, porque quando há um funeral de um católico numa Igreja e vêm budistas familiares a esse funeral, é evidente que eles não trazem o nosso rosário, trazem o rosário budista, porque se trouxessem o nosso, seria uma fachada, uma mentira. Portanto isso são aspectos muito delicados, que estão muito bem tratados nesse livro, um livro muito interessante.

A sua tese é precisamente uma leitura teológica da obra de Endo, nomeadamente da perspectiva do entendimento do sofrimento. Podemos então concluir que este não é só um tema que aparece em Silêncio, mas também noutras partes da sua obra?
Aparece no resto da obra. Silêncio é como que o eixo axiológico, onde se condensa a teologia do Endo. E depois há um outro romance que condensa de uma forma talvez mais abrangente e não tão profunda, a teologia do Endo, o Rio Profundo, o último romance. 

Mas, por exemplo, um romance que também está traduzido para português e que eu aconselho vivamente é o Samurai. O Samurai é considerado um romance autobiográfico, ou seja, um "eu romance". Um romance autobiográfico de Shusaku Endo, mas autobiográfico do percurso espiritual de Shusaku Endo. O Samurai que vai para o México e depois para a Europa e que se vai encontrando com esse Cristo esquelético, cravado na Cruz, que está sempre presente nos quartos onde ele fica, nos mosteiros por onde passa... De certa maneira esse companheiro que nunca o abandona e, quando ele se sente abandonado por todos, especialmente pelo senhor feudal que ele servia, sente que o único que não o abandonou foi esse Cristo esquelético, e acaba por morrer como mártir por esse Cristo esquelético que nunca o abandonou. É um romance impressionante. 

Depois tem outras obras, mais cristológicas, como "Uma Vida de Jesus", traduzido para português; depois tem também "Nas Margens do Mar Morto", que não está traduzido sequer para inglês;  E tem ainda "O Nascimento de Cristo", que também não está traduzido. E aí ele dedica-se mais ao seu estudo cristológico. 

Eu quando li pela primeira vez "Uma Vida de Jesus", quando foi traduzido para português, há muitos anos, eu fiquei com a sensação que o Cristo ali tratado era excessivamente humano, por isso o livro não me cativou, porque me pareceu um Cristo excessivamente humano. Mas depois de estudar Endo, de ver o seu percurso e analisar o seu percurso, cheguei à conclusão que não é um Cristo, excessivamente humano, é um Cristo profundamente humano. É o Cristo "companheiro", aquele que acompanha o sofredor sempre, em cada momento, como fez com o Rodrigues em Silêncio e só no final o Rodrigues percebe isso.

No livro, Ferreira argumenta que a fé praticada pelos Kirishitan não é sequer o Cristianismo como Rodrigues os entende. Tinha alguma razão?
Talvez ele tivesse uma certa razão. 

O povo japonês, por natureza, é muito sincretista. Eles têm um panteão de Deuses, ou de divindades, os Kami, e este Deus que veio do Ocidente, que foi pregado pelo Francisco Xavier, era mais um Deus que entrava no seu panteão. 

Penso que nessa altura, séculos XVI, XVII, certamente muitos japoneses ficaram com essa imagem, de um Deus que é mais um Deus, faz parte do panteão.

Mas há um aspecto curioso, e esse é que é o contraste... Como é que os japoneses, por exemplo aqueles que decidiram não apostatar, e que foram até ao fim, que são milhares e milhares, desconhecidos. Muitos foram beatificados, mas há muitos milhares que são totalmente desconhecidos. O que é que os levava a dar a vida por esse Deus? 

Se fosse considerado como mais um Deus desse mesmo panteão, então não teriam coragem de dar a vida por esse Deus. Penso que o Ferreira poderá ter razão até certo ponto. Digamos, numa parte da população japonesa da época, talvez ele tivesse razão. Noutra parte não.

No livro há uma cena em que Rodrigues ouve a voz de Cristo a dizer-lhe para pisar o Fumie. Na sua leitura, essa é mesmo a voz de Jesus, ou pelo contrário, é a voz da tentação, ou mesmo do demónio?
É uma boa pergunta. Pois... Eu penso que é a voz de Jesus, mas há aqui dois aspectos importantes a ter em conta.

O primeiro é o significado da apostasia em si. O que é que o Rodrigues apostatou? Foi o verdadeiro Cristo? Ou foi a imagem estereotipada de Cristo que ele levava do Ocidente? Repare que no início Rodrigues tinha uma imagem de Cristo vigoroso, forte, valente, corajoso, poderoso... Depois, quando estava na prisão em Nagasaki, esse Cristo começou a ser um Cristo sofredor, de olhos tristes, e finalmente, quando está para pisar a imagem, olha para o Cristo e é um Cristo desfeito, de sofrimento. 

Ao longo da sua peregrinação ele foi-se libertando dessa imagem estereotipada de um Cristo ocidental. Então ele, dizendo assim de uma forma sintética, ele apostatou um Cristo poderoso, que tinha trazido da Europa, um Cristo ocidental, e aceitou no seu coração o Cristo misericordioso. É aí que Cristo lhe diz, “podes pisar”. 

Há um pormenor, e isso é o segundo ponto, que pode parecer insignificante, mas tem muita importância a nível teológico. O original japonês não é uma forma de imperativo “pisa”. Mas quando foi traduzido para inglês, em 1969, por William Johnston, ele traduziu pela forma imperativa. 

Se Cristo, essa imagem da fumie de Cristo, lhe diz “pisa”, então o próprio Rodrigues não tem liberdade de decisão, é o Cristo que está a dizer para eu lhe pisar, eu piso porque Cristo me diz “pisa”, já não é responsabilidade dele. 

Mas se Cristo lhe diz “podes pisar” a decisão é dele. Ele tem a liberdade para decidir. Ou pisa ou não pisa. Isto é um pormenor, pode parecer uma nuance, mas acho que tem muita importância ao nível teológico. 

E eu creio que não é por acaso que Shusaku Endo não pôs aí de forma categórica uma forma verbal de imperativo.

Como disse, Rodrigues apostatou aquele Cristo estereotipado. É evidente que Cristo é sempre o mesmo, mas aquela imagem que ele trazia consigo, porque a imagem que temos de Cristo nunca é o Cristo completo, o verdadeiro, o verdadeiro ultrapassa muito a imagem que temos. É como Deus. Não podemos definir Deus. Porque se definíssemos ele cabia na nossa cabeça, na nossa capacidade de raciocínio. Então ele, uma vez mais, apostatou essa imagem que tinha levado e adoptou esse Cristo maternal, sofredor, débil, esse Cristo companheiro. Esse Cristo que tem a ver com a sua inculturação nesse pântano japonês.

Mas os que deram a vida por Cristo, como disse, certamente não a davam por um Deus entre muitos... Eles teriam essa imagem de Deus já inculturado?
Talvez ainda não tivessem totalmente...

No entanto eram japoneses e tinham-se apaixonado por esse Jesus... Ocidental.
Exactamente! Aí é algo misterioso...

Porque se compararmos a história do cristianismo no Japão e na Coreia, é completamente diferente. Na Coreia foram os coreanos que foram à China buscar o cristianismo. Fizeram do cristianismo uma coisa sua. No caso do Japão, foi do Ocidente que chegou ao Japão. 

O japonês, como disse, é muito sincretista e é muito – a palavra tem uma conotação negativa – mas o japonês é muito utilitarista. Absorvem tudo. Tudo o que é útil, eles absorvem, acarinham e incluem na sua cultura. Aquilo que não lhes interessa, abandonam. Por isso é que eles têm muitos elementos da China... Aliás, os caracteres são chineses, com algumas modificações, o budismo chegou através da China, e têm muitos elementos da Europa e dos Estados Unidos. 

Eles absorvem aquilo que lhes interessa e deitam fora aquilo que não lhes interessa. 

Esses cristãos, no início, quando morriam por esse Deus desconhecido, que no fundo era um Deus desconhecido, que eles conheciam principalmente através dos missionários, eu não sei... Intelectualmente talvez esse Cristo não estivesse integrado na sua fé. Mas houve ali um encontro. Isto é o mistério do encontro. E o mistério do encontro, que é o mistério da fé, não pode ser explicado. E isso continuará a ser mistério. Porque é que tantos milhares deram a vida por esse Cristo!


Num seu artigo fala do livro como um protesto contra a imagem de Deus-juiz…
Naturalmente Deus é Pai, mas como o Papa Francisco tem referido, e acho que muito bem, Deus é Pai e Mãe, ou seja, Deus é Pai, mas com sentimentos maternais. 

Heinrich Fromm, no seu livro “A Arte de Amar”, fazia a distinção entre o amor de Pai e o amor de Mãe. O amor de Pai exige sempre alguma coisa em troca. O amor de mãe é aquele amor que não exige nada em troca. Não sei se será bem assim, mas ele definia isto assim. 

Eu acho que o Deus Pai, que foi naturalmente transmitido aos japoneses, eles sentiam-no como um juiz. Um juiz que estava ali – eles sentiam-no, não quer dizer que fosse – sentiam que estava ali para apontar as suas faltas. 

O Japão no século XVI era um país miserável, feudal, a esmagadora maioria da população vivia na miséria. E o que eles necessitavam era como que o instinto maternal que os amparasse, que os acompanhasse, que lhes perdoasse as faltas. “Eu cometi um pecado, mas vem esse Deus com um instinto maternal que me perdoa”. O que eles necessitavam era disso, precisamente. A “conversão” do Rodrigues tem a ver precisamente com essa passagem da imagem de Deus Pai para o Deus de compaixão maternal. Aliás, é um Cristo que Shusaku Endo introduz nas suas obras desde “Obaka San, o Idiota Maravilhoso” – que ao que parece foi traduzido no Brasil, mas eu não li nessa tradução –, mas já ele tinha começado aí precisamente a estruturar esse Cristo, que depois, no Silêncio, está mais fortemente estruturado, e depois acaba por ser também, numa outra dimensão, mais bem estruturado nas suas três obras que referi à pouco da sua cristologia, e também no “Samurai”. 

Quais são as características deste Cristo? É um Cristo que tem fundamentalmente as características de ser débil, não é um Cristo constantiniano, porque esse Cristo triunfalista já não atrai, nem sequer atrai na nossa época, portanto era um Cristo não triunfalista, mas um Cristo débil. Um Cristo que não está longe, perdido na transcendência, mas um Cristo que entra no lodo da nossa vida, um Cristo que está na trivialidade da nossa vida, como nosso companheiro, e é um Cristo que perdoa as nossas falhas, os nossos pecados, as nossas faltas, por muito graves que elas sejam, como uma mãe que abraça. E o japonês necessitava desse afecto. Todos nós necessitamos. Uma mãe que perdoasse as suas faltas. Principalmente esses que pisavam a imagem. 

A pergunta que fazia Shusaku Endo, antes de escrever esse livro, quando viu a fumie no museu, em Nagasaki, era “Se eu tivesse vivido nessa altura, não teria eu também pisado a imagem?” Ele dizia que certamente que um preguiçoso como ele teria pisado a imagem. Depois, perguntava, que tipo de pessoas eram essas que tinham pisado a imagem? E uma outra pergunta: O que terão sentido ao pisar a imagem?

Ele tinha estas três perguntas em mente quando viu a fumie. Foi aí que ele pensou que tinha de escrever um romance sobre isto.

Portanto o Cristo é este Cristo destas três dimensões, e uma dessas dimensões é esse da compaixão maternal. 

Afinal há uma grande carga de Cristianismo em vários dos livros de Endo. Como é que isto é recebido num Japão em que só 1% da população é cristã? Se um dos nossos grandes autores de referência escrevesse livros com uma forte componente hindu, dificilmente teria grande popularidade...
Ele é muito admirado no Japão, é muito famoso. Fez muitos programas na televisão. 

Os romances dele são muito densos, muito dramáticos, normalmente muito intensos. Então ele precisava de algo que contrabalançasse com a intensidade dos seus romances e começou a fazer uns programas na televisão, o professor Korian - Korian Sensei. Escreveu muitos livros também sobre essa personagem, que são livros cómicos.

Mas a partir desses programas que ele fez na televisão, passou a ser famosíssimo em todo o Japão. Portanto é muito famoso no Japão. Poucas pessoas não o conhecerão, não terão lido algum livro dele. Agora, as pessoas quando lêem um livro dele, se não estudarem a teologia, acaba por ser um romance que se lê assim, superficialmente. Eu quando li “Silêncio” da primeira vez, era muito dramático, mas pronto, não aprofundei. Ou, como já referi há pouco, quando li “Uma Vida de Jesus” não fique muito contente, porque me pareceu um Cristo excessivamente humano, próximo de mim. 

Ele é muito admirado, e isto é um aspecto muito positivo para o Cristianismo no Japão.

E que tem dado frutos, em termos práticos?
Sim. Eu conheci alguns fiéis, na paróquia onde estive, que decidiram ser cristãos a partir da leitura do livro de Shusaku Endo.

Em vida teve esse reconhecimento?
Sim. Teve até uma audiência com o Papa Paulo VI, que lhe dizia para continuar, por favor, o seu trabalho de evangelização no Japão. Não foi uma audiência privada, foi uma audiência geral, há fotografias. 

Mas mesmo no Japão ele foi reconhecido mais tarde, não no tempo. Na altura da publicação de “Silêncio” houve algumas vozes discordantes. Houve ali, quanto a mim, uma interpretação incorrecta da mensagem que ele quis transmitir. Mas hoje é reconhecido pela hierarquia da Igreja.

Haverá o perigo, por assim dizer, de quem ver o filme, ou ler o livro, sem esse conhecimento todo, ser levado ao engano, ter uma ideia diferente daquilo que ele está a tentar transmitir. Que conselhos deixa a quem vai ver o filme pela primeira vez?
Que não tire conclusões precipitadas, que reflicta. Porque o livro deve levar-nos a reflectir.

Depois de fazer este estudo sobre Shusaku Endo, li “Silêncio” muitas vezes, tinha que ler, e ainda hoje continuo a reflectir sobre “Silêncio” e sobre a mensagem do “Silêncio”, porque se nós vamos ver o filme – principalmente ver o filme – e vemos o Rodrigues a pisar a imagem, a apostatar, e se chegamos à conclusão que ele apostatou, por isso é um fraco, o outro não apostatou, por isso é um forte, isto é uma precipitação.

Se nós analisarmos a apostasia de Rodrigues como um acto de compaixão para com os cristãos que estão a passar pelo martírio, para os libertar, não é um incorrecto pensar assim, é correcto. Ele decidiu apostatar para salvar os cristãos que estavam a ser martirizados, porque as autoridades tinham dito que se ele apostatasse, mesmo que fosse um pró-forma – porque eles queriam um padre, para dar o exemplo – seria libertado e os cristãos que estavam a sofrer seriam libertados. Por isso é que o próprio inquisidor lhe dizia que ele estava a fazer com que os japoneses sofram, través da tua teimosia, de não quereres apostatar. 

Portanto, se nós virmos que ele apostatou por compaixão, aí está, por compaixão por aqueles que estão a sofrer, é uma interpretação correcta. Se a pessoa quiser aprofundar mais, e deve aprofundar mais, deve reflectir o que significou essa apostasia, o que é que ele apostatou, e porque é que ele, depois de ter apostatado, diz que a instituição e os seus irmãos jesuítas irão condená-lo, mas que ele continua a sentir-se o último padre no Japão, porque a partir do momento em que apostatou começou a amar Cristo de uma forma diferente, mas de uma forma mais intensa. 

Se nós reflectirmos sobre o significado de tudo isto, então isso levar-nos-á muito longe. O que eu gostaria, de facto, era que todos nós cristãos reflectíssemos a partir daí, sem tomar decisões precipitadas, sem conclusões precipitadas, porque se fizermos interpretações precipitadas, ficamos na superfície.


Qual é a relevância da personagem Kichigiro?
Kichigiro é uma das personagens mais importantes do livro. Ele representa, de forma geral, Judas. Shusaku Endo colocou ali o Kichigiro para tentar provar que Jesus também salvou Judas. Ele tinha esse problema, da salvação de Judas. 

E porquê? Porque o próprio Shusaku Endo sentia em si remorsos por ter traído pelo menos duas vezes a sua mãe. Quando ele estava na Manchuria o pai levava-o e ao seu irmão a passearem no parque, e a mãe ficava em casa, a trabalhar. Aos 10 anos ele apercebeu-se que o pai os levava a passear no parque para se encontrar com uma mulher. 

Então o pequeno Shusaku pensou: “Se vou dizer à minha mãe, vou trair o meu pai, se não digo, estou a trair a minha mãe”. Então ele vivia naquele dilema e acabou por não contar nada à sua mãe e sentiu que traiu a sua mãe. 

Tinha esse sentimento de traição, assim como tinha ao seu cão, “Negro”, que ele tinha na Manchuria, que era o seu confidente, com quem conversava precisamente sobre esses problemas. Estamos a falar de uma criança de dez anos...

E quando ele deixou a Manchuria com a sua mãe, o cão foi a correr atrás do carro, mas depois cansou-se e teve de parar, por isso ele sentiu também esse sentimento de traição em relação ao cão.

Em relação à mãe, voltou a ter um sentimento de traição quando, já de volta ao Japão, ele foi viver com o seu pai, que entretanto tinha contraído segundas núpcias. E mais uma vez depois de a sua mãe morrer, numa altura em que ele não estava em casa.

Tudo isto fez com que ele se identificasse muito com judas, com aquele que trai, e ele sentia que se Judas não fosse salvo, isso significaria que havia uma altura em que a graça não tinha sido suficiente para o pecado, ao contrário do que diz na Bíblia “onde abundou a Graça, superabundou o pecado”, por isso é que ele sentia que era necessário que Jesus tivesse salvo judas e Kichigiro representa isso. 

No fim do livro Kichigiro e Rodrigues passam a viver juntos, em comunidade, o que representa não só a reabilitação de Kichigiro, como também “conversão” de Rodrigues a este Cristo “japonês”.

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