Entre a vida e a morte

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO    31.01.17    JORNAL DE NOTÍCIAS

1. Tem-se insinuado no debate público uma ideia que é um veneno. Veneno não é insulto, é qualificação: é que essa ideia mata. É a ideia da eutanásia legalizada. Agora, está na ordem do dia. Não ponho em causa os sentimentos de quem a defende por dolorosa experiência própria, ou genuinamente condoído por sofrimento que observa ou imagina. O sofrimento humano interpela-nos com dureza, por vezes de forma desconcertante. Abstenho-me de julgar as reações que provoca, sejam quais forem.
O problema é reconhecer e atribuir a alguém o poder de matar. Não pode ser. Essa caixa de Pandora não pode ser aberta - nem é preciso abri-la.
2. De forma geral, as ordens jurídicas em que nos enquadramos consideram a eutanásia ilegal há décadas, senão séculos. Só recentemente têm surgido esforços, aqui e ali, para a admitir na lei, como na Holanda e na Bélgica. Escândalo maior, permitiram a eutanásia de menores.
Sinal da hipocrisia das instituições europeias é terem entrado em histeria, há uns anos, por uma politiquice na formação do Governo austríaco e ameaçado a Áustria com sanções e suspensão; e continuamente rasgam as vestes contra a Hungria de Viktor Orban. Mas, contra a Holanda e a Bélgica, que não se limitam a ameaçar, antes violam significativamente o património comum europeu de direitos humanos fundamentais, atingindo até crianças, não esboçam o mínimo protesto, nem organizam missões de observação e de reporte.
Esta evolução é uma regressão e um paradoxo. É absurdo que seja na época em que o alívio e supressão da dor são mais acessíveis, em que a assistência na morte é mais completa, em que os cuidados médicos são extensos, que alguns querem precipitar a morte. Não é a compaixão que aumentou, não é a solidariedade que aumentou - são outros os sentimentos que cresceram.
3. Compreendo haver quem, vivendo ou antecipando o desespero, pense na eutanásia como boa para si. Mas, ainda aí, não tem legitimidade para impor o risco aos outros. Uma ordem jurídica, um quadro ético e deontológico, é para todos: aberta uma porta, fica aberta para todos. Neste caso, como risco e ameaça.
A questão não é compaixão e solidariedade. Toda a pessoa em sofrimento merece ser socorrida, apoiada e acarinhada, eliminando, minorando ou aliviando o sofrimento. Não podem, de forma alguma, ser esquecidas, nem desvalorizadas as situações dolorosas - às vezes, muito dolorosas - por que todos passámos, passamos ou passaremos na vida. São situações que interpelam a nossa humanidade, que desafiam a nossa coragem e o nosso amor. A questão é se podemos, por lei, atribuir a alguém o poder de matar. Não podemos. Isto é, não podemos, na civilização em que estamos.
O debate da lei resvalará provavelmente para a dramatização populista de casos concretos, apresentados de modo unilateral e dirigido. Já foi assim noutros debates: a confusão intencional dos planos do legislador e do juiz. Uma pura fraude. Diversamente dos magistrados, que têm vasta ferramenta para lidar com casos concretos, o legislador só emite preceitos gerais e abstratos. Não é de outra maneira. E o preceito geral e abstrato, em sociedades que observam o direito à vida, só pode ser: matar, não.
O progresso da medicina confronta-nos crescentemente com problemas complexos e de decisão difícil. Mas, além da reprovação do encarniçamento terapêutico, a classe médica, juntamente com os doentes e as suas famílias, está perfeitamente habilitada a lidar e a decidir esses problemas no quadro da lei e da deontologia. O Direito não tem de se imiscuir mais naquilo que é próprio da ética médica.
Os promotores da lei da eutanásia acreditam provavelmente num Mundo em que não há corridas a heranças, não há violência doméstica, não há abandono de velhos e doentes. Acreditam talvez que uma lei que permita matar não estimulará o já hoje enorme egoísmo social. Acreditam que, podendo haver corrupção em todos os estratos e profissões, não há qualquer possibilidade de corrupção entre profissionais de saúde.
Eu não creio nisso. A porta da eutanásia é um poço sem fundo. Um poço de morte.
4. Penso impor-se objeção de consciência legislativa. Por maior que fosse a minha dúvida, não quereria pôr o meu voto ou a minha assinatura numa lei que servisse para matar alguém. Quando soubesse de um caso e, mais ainda, de um escândalo, eu não quereria ter o peso dessa culpa.
Ainda por cima, tendo que atropelar a Constituição, suprema garantia, e fazer de conta que não diz taxativamente aquilo que escreve: "A vida humana é inviolável".
* EX-LÍDER DO CDS

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