Martírio e Fraqueza

PEDRO VAZ PATTO

Recordo-me bem de ter lido Silêncio, do autor japonês Shusaku Endo, já lá vão uns bons anos. Ficou-me retido o fascínio pela profundidade da análise do drama existencial do protagonista, mas também alguma perplexidade a respeito da mensagem do livro. Os comentários (contrastantes entre si), que agora li, ao recente filme de Martin Scorcese baseado nesse livro confirmam essa mesma perplexidade.
Nun desses  comentários, o bispo norte-americano Robert Barren afirma que «como qualquer grande filme ou novela, Silêncio resiste a uma interpretação unívoca». Também isso revelam esses comentários.
Trata-se da história de dois missionários jesuitas portugueses que, no século XVII, percorrem o Japão em busca de um outro missionário, Cristovão Ferreira, o qual, de acordo com as crónicas da época, depois de ter sido mentor de muitos outros missionários jesuitas, não resistiu à tortura e renegou a sua fé, no período de violenta perseguição aos cristãos. Esse período de perseguição seguiu-se a um outro, de notável expansão missionária (em sessenta anos, o número de cristão atingiu os trezentos mil) que chegou a ser denominado “século cristão” do Japão. 
O protagonista, Sebastião Rodrigues, dilacerado pela dúvida, vem a seguir o caminho de Cristovão Ferreira. Cede à chantagem de que é vítima: se pisar uma imagem de Jesus Cristo, sinal da sua apostasia, poderá salvar da morte um grupo de japoneses pobres convertidos ao cristianismo. O seu gesto pode ser objeto de várias leituras: uma cedência à sua própria fragilidade, ou um ato de suprema compaixão para com esses cristãos (perde-se para os salvar). Parece seguir a voz do próprio Jesus Cristo, que lhe diz para assim proceder, pois foi para ser pisado e crucificado que Ele veio ao mundo. Mas resta a dúvida se será mesmo essa a vontade de Deus, ou se essa não será uma forma de auto-justificação. 
O livro foi, ao tempo da sua publicação, nos anos sessenta, objeto de severas críticas por parte de católicos japoneses. O bispo de Nagasaqui desaconselhou a sua leitura aos seus fiéis. Parece que contém uma justificação da apostasia, não valorizando o ato heróico dos mártires japoneses da época. 
Agora, a propósito do filme, também já se escreveram críticas do mesmo teor.
A apostasia não se justifica em caso algum, mesmo para salvar vidas, porque os fins não justificam os meios. Na combate interior de Sebastião Rodrigues, a dúvida e a fragilidade levam a melhor sobre a fidelidade dos mártires. Nesta linha, questionam a coerência cristão da mensagem do livro e do filme, entre outros, o bispo Robert Barron (em Catholic World Report), Brad Minner (em The Catholic Thing), John Paul Meenan (em Crisis Magazine) e J. D. Flynn (em First Things).
Por isso, o comentário ao filme do departamento de crítica cinematográfica da Conferência Episcopal norte-americana (Catholic News Service) afirma que o filme é adequado a pessoas de fé sólida que saibam fazer um discernimento maduro.
Compreendo essas críticas. A mensagem do livro e do filme pode ir de encontro à mentalidade contemporânea, hedonista, pouco exigente, oposta à dos mártires, dispostos da dar a vida pela sua fé. Essa mentalidade não pode entender as palavras de Jesus no Evangelho: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-me. (...) Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa há de salvá-la» (Lc 9, 23-24).
O martírio percorre a história da Igreja. «O sangue dos mártires é semente de cristãos» - dizia Tertuliano nos primeiros tempos do cristianismo. E – disse já várias vezes o Papa Francisco – são hoje mais numerosos os mártires do que o eram nos primeiros tempos do cristianismo. O cristãos assassinados pelo Daesh e pelo Boko Haran poderiam ter salvo a sua vida se tivessem renegado a sua fé (e poderiam tê-lo feito só externamente). Tal como poderiam ter evitado a fuga e a perda de todos os seus bens muitos  cristãos da Síria e do Iraque hoje refugiados. Mas – disse com veemência a Irmã Maria de Guadalupe que esteve há pouco tempo entre nós - «eles sabem que o Céu não se negoceia».
Era esta a fibra dos mártires japoneses do século XVII, missionários e japoneses convertidos ao cristianismo. O livro e o filme parecem não os compreender ou valorizar devidamente. O martírio dos japoneses nativos é sinal eloquente de que, apesar das  falhas no processo de inculturação do cristianismo, este não deixou de criar raízes no Japão (o que também é questionado no livro e no filme).
Mas outra leitura do livro e do filme é possível.
Convirá referir que Martin Scorcese foi aconselhado pelo sacerdote jesuíta James Martin e que os dois atores principais procuraram estudar e vivenciar a espiritualidade jesuita participando em retiros espirituais.
O final da história também deixa alguns sinais de que o protagomista, Sebastão Rodrigues, não terá renegado completamente a sua fé.   
Afirma Enrique Chuvieco (em Religion en Libertad): «Silêncio é um bom filme católico, onde se reconhece – num dos protagonistas – através de um extenuante e doloroso caminho, que Deus atua em cada alma de forma distinta e que, em situações tão extremas, está silenciosamente presente no sofrimento, como esteve com o seu Filho».
Para Juan Manuel de Prada (em Magnificat.net), Sebastião Rodrigues «nunca saberá de todo se cedeu aos suplícios de compaixão dos camponeses, ou se o fez para justificar a sua fraqueza, mas saberá com certeza plena que Cristo continua a amá-lo, como, sem dúvida, amou Judas até ao fim»; com ele «descobrimos que não existem fortes ou fracos, pois quem poderá assegura que os fracos sofrem menos do que os fortes?»
E o Pe. João Maria Brito, SJ, no Observador: «A fé também cresce nestas linhas curvas, nos pontos de rutura das nossas vidas em que sabemos tão pouco, em que nos restam tão poucas certezas. Aí, talvez o nosso grito por Deus seja mais fundo e O possamos escutar, ainda que não O consigamos ouvir de um modo límpido (...); entrar nas sombras mais profundas da fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se cala para sempre».
Ou seja, e em resumo, Deus não abandona (e o seu silêncio é só aparente) quem tem dúvidas, quem fraqueja, quem não consegue levar a sua fidelidade até às últimas consequências.
Com esta leitura, o livro de Endo e o filme de Scorcese não desiludirão os cristãos.
                                                                      

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