América, Churchill e a "corrente de ouro"

JOÃO CARLOS ESPADA    23.01.17   OBSERVADOR


Se a democracia americana tem sido capaz de assimilar tantas mudanças inesperadas, isso deve-se a um quadro de tradições estáveis — a Churchilliana “corrente de ouro” — que permite mudar sem destruir.

Já tudo terá sido dito sobre a semana política que (felizmente já) passou. De certa forma, ela exprimiu alguns dos mais entediantes traços das modas culturais que nos rodeiam: o culto das celebridades e da vulgaridade daquilo que dizem energicamente; o culto da mudança radical e da inovação, da celebração do futuro em ruptura com o que alcançámos no passado; o culto do entusiasmo e da exaltação, por contraste com a serenidade, a cortesia e as boas maneiras.
Isto, creio, é o que pode ser dito educadamente sobre o discurso de tomada de posse do Presidente Donald Trump. E é também o que pode ser dito educadamente sobre os discursos das celebridades (e das massas) que desfilaram contra ele em Washington (e não só) no sábado a seguir à tomada de posse. Seria uma triste sina ter de escolher entre um estilo e o outro — ambos por sinal bastante semelhantes, ainda que opostos.
Mas não houve só isso, em Washington, na semana passada. Houve também — e creio que acima de tudo — a solenidade ancestral da transferência de poderes, pacífica e cortês, numa das mais antigas democracias do mundo. O Presidente Trump jurou sobre a Bíblia fidelidade à Constituição americana — tal como fizeram os seus predecessores desde George Washington. E, no almoço que se seguiu à cerimónia, revelou ser capaz de estimável contenção e “fair play”: simplesmente destacou e agradeceu a presença do casal Clinton.
São estas antigas regras da democracia que permitiram a eleição do Presidente Trump — que, recorde-se, foi eleito como candidato republicano sem na verdade ter anteriormente pertencido ao partido republicano e sem nunca ter desempenhado qualquer cargo político. Foram essas mesmas antigas regras que permitiram há oito anos a eleição do primeiro presidente negro americano — menos de duas gerações depois da batalha pela plena universalidade dos direitos civis na América.
Por outras palavras, se a democracia americana tem sido capaz de assimilar tantas mudanças inesperadas, isso deve-se a que a mudança ocorre num quadro de tradições estáveis. Por outras palavras ainda, grandes mudanças são possíveis na América porque elas não precisam de recorrer à Revolução — ou àquilo que no continente europeu se designa excentricamente por “mudança de regime”.
Esta é a benção que distingue as democracias mais antigas. Esta é a benção que devemos destacar nos tempos conturbados que enfrentamos. E é em torno dela que devem reunir-se as vozes diferentes, tantas vezes rivais, que em comum partilham a defesa da tradição ocidental da liberdade sob a lei.
Foi neste sentido um sinal positivo que o Presidente Trump, poucas horas depois de tomar posse, tivesse voltado a colocar o busto de Winston Churchill na sala oval. Churchill, cuja mãe era americana, tinha alergia a revoluções e acreditava que a ausência delas era um dos principais distintivos dos povos de língua inglesa. Disse ele sobre a filosofia política de seu pai, Lord Randolph Churchill:
“Ele [Lord Randolph Churchill] não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser conciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”
Numa época em que as modas celebram a inovação e a ruptura, talvez não fosse pior voltar a cultivar as estáveis tradições — a Churchilliana “corrente de ouro” — que permitem mudar sem destruir.

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