O tempo dos pós-socráticos
Helena Matos
Observador 20/12/2015
Enquanto Sócrates anda às voltas com a Justiça, os pós-socráticos ficaram livres do passado e, o que é dramático, de mãos soltas para voltar a aplicar as receitas do passado.
Os pós-socráticos não têm ideologia. Têm objectivos. Ou melhor, um objectivo: ser poder. E têm um passado, que é aliás o seu denominador comum e a circunstância que faz deles o que são: pós-socráticos.
Os pós-socráticos estiveram no poder com Sócrates e com ele perceberam como a esquerda democrática, esgotado o modelo do socialismo por falta de dinheiro para distribuir, ficou disponível para apoiar mais caudilhos do que líderes porque os primeiros ao contrário dos segundos lhes reforçam a ilusão de que o mundo gira consoante a sua vontade. Mas a maior dívida de gratidão dos pós-socráticos para com Sócrates nasce não da maioria absoluta que Sócrates lhes deu e da desenvoltura narcísica com que exerceu o poder mas sim do facto de Sócrates e as suas estapafúrdias circunstâncias de vida terem poupado o PS e os dirigentes socialistas que o rodeavam a serem confrontados com o balanço da sua governação.
Ao reduzir-se o balanço dos anos de Sócrates à frente do PS ao anedótico dos envelopes com garrafas e à estrambólica megalomania que caracterizava o antigo primeiro-ministro, eximiu-se o PS de prestar contas pelo desastre a que não só por sua responsabilidade mas em grande parte por ela o país chegou em 2011.
Neste momento António Costa reproduz o modelo económico de Sócrates – atirar dinheiro para a economia, apostar no consumo interno, aumentar a despesa do Estado – e mimetiza, exponenciando-os, os traços da arrogância do antigo primeiro-ministro perante quem não se submeter à sua vontade. Para já os directamente visados são os accionistas maioritários da TAP que, garante Costa, volta para o Estado, com ou sem acordo, e as empresas que ganharam as concessões dos transportes de Lisboa e Porto.
A leviandade da actuação do actual primeiro-ministro nestas matérias, a par da quebra dos vários compromissos em que assentava o regime (presidência da AR, escolha dos membros do Conselho de Estado) deviam ter feito soar vários alarmes mas, depois de Sócrates, no que aos socialistas respeita, Portugal tem uma regra: ou é crime ou é carisma.
E assim, enquanto Sócrates anda às voltas com a Justiça, os pós-socráticos ficaram livres do passado e, o que é dramático, de mãos soltas para voltar a aplicar as receitas do passado, agora com a prestimosa ajuda cénica das esquerdas da esquerda.
Oficialmente as esquerdas uniram-se para terem um governo. Depois as esquerdas deram as mãos para terem mais lugares no Conselho de Estado e a Presidência da Assembleia da República. Também temos direito à esperança porque a esquerda está no poder. Um novo tempo porque este é o tempo da esquerda… Para lá do recorrente folclore da esquerda festiva (alguém que à direita entrasse em semelhante exaltação mística com um governo das direitas seria dado como louco furioso na melhor das hipóteses) temos um facto: as corporações que vivem do Estado estão a reforçar o seu poder não apenas na máquina estatal mas também nos partidos. Não por acaso o PCP está a reduzir-se à condição de braço político dos sindicatos, sobretudo da aérea dos transportes, que não se importam de ver o partido perder votos desde que eles continuem a ver garantidos os seus privilégios graças ao apoio que o PCP dá a este Governo.
Mas a utilidade da arregimentação das esquerdas não acaba aí. Essa exaltação colectiva é fundamental para reforçar a ideia da direita enquanto um corpo estranho no nosso sistema político.
A discussão em torno da direita é em Portugal uma espécie de encontro sobre o grau de tolerância a mostrar perante comportamentos desviantes. Para começar assente-se no dogma: está cientificamente demonstrado que esta direita, a nossa, é a mais estúpida do mundo. Algures, existirá ou terá existido aquela direita, estoutra direita, aqueloutra direita, essoutra direita…que é (ou foi) culta e civilizada. Mas a nossa, a contemporânea, é inapresentável e nada tem a ver com a direita do algures ou do passado, nomeadamente a representada por Sá Carneiro. (Curiosamente enquanto Sá Carneiro foi vivo nunca lhe foi reconhecido esse estatuto superior, antes pelo contrário.)
Salvaguardada a direita do algures ou do passado resta portanto “esta direita”, a contemporânea. Aquela que somatiza aquilo que a esquerda intelectualiza. Onde a esquerda tem indignados a direita tem ressabiados. Onde a esquerda sente traições a direita fica raivosa. Onde a esquerda denuncia conluios a direita sofre de azia. Dada esta circunscrição da direita a uma espécie de aparelho digestivo rudimentar passam por comentário político declarações como as de Edgar Silva, candidato presidencial do PCP, para quem a direita está “raivosa” e com “azia” e de António Costa que diz esperar “que o ressabiamento nervoso da direita passe daqui a uns meses”. Como não podia deixar de ser, Marcelo Rebelo de Sousa, reduz tudo (e a si mesmo) a uma espécie de paráfrase do pessoano “Come chocolates pequena” propondo-se enquanto Presidente da República ajudar a lidar com a “amargura” da direita.
É isto Portugal no fim de 2015: os pós-socráticos governam, as esquerdas dão o tom e a direita está reduzida à condição de estômago. Como não podia deixar de ser o único que anda à procura do seu lugar no tempo dos pós-socráticos é Sócrates.
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