A luta e a espera
João César das Neves
DN 20151216

O recente cartaz da Juventude Comunista Portuguesa inclui uma boa ilustração da sua ideologia. Isto parece menor mas, com a crise, os equívocos do radicalismo ultrapassam em muito a propaganda partidária. A mesma atitude está cada vez mais presente, da Frente Nacional francesa ao Syriza grego e militantes islâmicos. Assim a imagem mostra algo que afecta todos.
O desenho, a branco num fundo vermelho, mostra um cardume de pequenos peixinhos cuja disposição forma um peixe enorme de boca aberta, ameaçando um peixe grande à frente, na mesma pose do cardume. O lema anexo é "De que estás à espera? Junta-te à luta! Adere à JCP".
À primeira vista a imagem interpreta uma fábula. Os peixinhos, que obviamente representam o povo politicamente motivado pela militância, vencem os grandes deste mundo. A luta a que o slogan apela seria o legítimo combate contra os poderosos, que injustamente exploram os fracos e pobres. A moral podia ser "a união faz a força" ou "proletários de todos os países, uni-vos". Esta parece a lógica da luta de classes.
Mas, para ilustrar tal doutrina, a composição está incompleta. O desenho teria esse sentido se existissem alguns peixinhos pequeninos, dispersos em frente do peixe grande e ameaçados pela sua boca. Só nesse caso existiria uma luta de classes. Apenas aí o cardume faria justiça. Unicamente assim a JCP mostraria o seu impacto, contrastando a vulnerabilidade dos peixinhos soltos com o poder dos organizados. Como está, o cartaz representa simplesmente um pobre peixe passeando de boca aberta, prestes a ser agredido por um bando de salteadores. O anúncio não ilustra a luta de classes mas uma caçada em cardume.
Este é o primeiro equívoco, a diferença entre justiça e ideologia. É razoável que os culpados sejam punidos; não é legítimo que os grandes sejam considerados culpados só por serem grandes. A lei e a política existem para castigar os que abusam do povo, não para perseguir os maiores. Na verdade, a hipótese-base da luta de classes é a existência de uma animosidade automática entre pessoas, apenas devido à sua posição relativa nas fronteiras sociais. Os pequenos e os grandes são inimigos simplesmente por terem tamanhos desiguais. Esta atitude é cómoda, porque evita o trabalho moroso de destrinçar inocentes de culpados, reduzindo-o a mera medição. O resultado será sempre injusto porque impessoal.
Este repúdio ideológico à diferença é o mesmo que alimenta a xenofobia contra refugiados ou a raiva de credores a devedores, e vice-versa. Ela é também a hipótese básica dos terroristas, que matam indiscriminadamente, pois a maldade dos transeuntes é não serem dos nossos. Afinal a diferença de tamanho no cartaz é ainda mais arbitrária do que a distinção de cultos pelos fundamentalistas.
Não pode ser isto que o anúncio quer dizer. A JCP não é xenófoba ou terrorista. Como instituição legal e democrática, ela não advoga o poder das turbas devorarem cidadãos. Para que o desenho seja decente é preciso acrescentar a hipótese de os grandes serem maus por crescerem à custa dos pequenos. O cartaz só não é uma infâmia anticivilizacional se assumir a existência dos tais peixinhos ameaçados à frente.
Existe porém um segundo equívoco, de certa forma ainda pior do que o primeiro. Aceitando por momentos a hipótese ideológica de que o grande é mau e devora pobres, mesmo assim, aquilo que o cardume faz é precisamente o mesmo que o predador. A luta limita-se a converter os pequenos em agressores, criando mais agressão. Mas ladrão que rouba a ladrão não tem cem anos de perdão, por também roubar.
Não vimos o cartaz seguinte, mas, quando os peixinhos consumirem o grande, vão certamente atacar-se uns aos outros. A luta de classes, pela sua própria lógica, tende a perpetuar-se. Depois de Nicolau II ser morto é preciso fazer de Trotsky o vilão, para manter a dinâmica do cardume. A luta de classes transforma-se em lei da selva, sem nunca se chegar à sociedade sem classes. O problema de se juntar à luta, como o lema incita, é que dela só se sai morto.
Esta segunda confusão é a que suporta a evolução política recente na Europa. Os problemas são graves, a dívida é pesada, há corrupção e as reformas não acontecem. A reacção natural é radicalizar o discurso, apostando em forças revolucionárias. Só que estas não têm realmente soluções plausíveis. Limitam-se a atacar os governos que falharam. Greves, manifestações, desconfiança generalizada dos eleitores e subida dos partidos extremistas pioram tudo. Se a luta é isto, é compreensível ficar à espera.
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