Espírito liberal: «viver e deixar viver»

Mário Pinto
Observador 8/12/2015, 0:3131

O que vemos na deriva ideológica jacobina é a traição ao liberalismo humanista e democrático, à íntima ligação entre direitos humanos fundamentais, Estado de direito democrático e reverência religiosa
  1. Os liberais não são algo de garantidamente homogéneo: há liberais e liberais. Como aliás acontece com outras doutrinas e ideologias: por exemplo, há socialistas e socialistas; há diferenças entre os defensores da doutrina social da Igreja; etc. Mas é possível e legítimo procurar identificar uma raiz genuína aos liberais — assim como para os socialistas e para os cristãos democrata-sociais. Se este exercício não fosse legítimo e possível, então não poderíamos usar o conceito minimamente conotativo de liberal, de socialista, de cristão-social.
  2. E então, qual será a raiz genuína do liberal? Digamos assim: qual será o genuíno espírito liberal? Desde já declaramos que não desconhecemos (pelo menos de modo crasso) os principais contributos que têm sido oferecidos a este propósito, designadamente quando se estudam os vários liberalismos — e estamos abertos a sugestões para revisitar a questão. Mas, por nós, diríamos, usando os termos da conhecida expressão popular, que uma definição satisfatória de «o liberal» seria: aquele que, em gozosa reciprocidade, deseja «viver e deixar viver». Aquele que, sem contradição, deixa cordialmente viver os outros com a autonomia que deseja para si mesmo, isto é, como eles próprios acham bem e bom para si e os seus. Não, evidentemente (note-se bem), como cínicos; não, evidentemente, sem qualquer discussão sobre o bem e o mal; mas como pessoas humanas dispostas a respeitar a virtude civil comum, com consciência ética pessoal e social — portanto, num quadro mínimo ético, não num quadro relativista.
  3. Creio que, de um ponto de vista filosófico, este igual desejo, para si e para os outros, pode-se basear na «arcana sabedoria», que (deixando agora de lado o personalismo cristão) reemergiu modernamente no imperativo kantiano: «dá ou faz aos outros aquilo que desejas para ti». No cristianismo, este imperativo filosófico (e então como mínimo), para além de ser religioso, quer dizer, emergente da relação dos humanos com Deus, dá nascimento ao conceito social-jurídico do bem comum — o bem comum, para a doutrina social da Igreja, não é um bem transpessoal, é um bem pessoalíssimo, porque se define como o bem que é gozado igual e solidariamente por todos e cada um, assim a modos do ar que todos respiramos sem inveja uns dos outros, porque se falta, falta para todos.
  4. Mas isto de viver e deixar viver (em espírito não apenas de reciprocidade, mas, além disso, também em espírito de responsabilidade social), continua hoje a ter muito que se lhe diga, apesar de nos considerarmos politicamente muito avançados, no chamado «Estado de Direito Democrático», tal como a nossa Constituição o define, logo no seu art. 2º. Porque o que parece tornar-se evidente, nos nossos dias, é o acúmulo de contradições irracionais discriminatórias que, em nome da liberdade e da igualdade, um certo discurso político «bem-pensante», aliás muitas vezes verbal e fisicamente agressivo, simultaneamente reivindica a liberdade e ataca a liberdade — ou reivindica mais liberdade (para si) censurando a liberdade (para os outros). Por exemplo: não faltam vozes incisivas que constantemente atacam os «ultra-neo-liberais» na economia e no Estado social; e depois, sobre esta crítica discriminatória, continuam a discriminar na defesa do seu próprio liberalismo cultural e de costumes, ao mesmo tempo condenando o pluralismo das escolas privadas e exigindo o monopolismo da escola pública: são pro-choice no aborto, mas são contra-choice na escola. Num outro caso, está na «moda politicamente correcta» ridicularizar a expressão social da fraternidade cristã, enquanto expressão do amor cristão, chamando-lhe «caridadezinha»; mas esses mesmos são a favor da respeitabilidade de todas as expressões de amor erótico ou sexual, conforme cada um quiser — aqui, na sua expressão sexual, o amor à moda de cada um é sempre bom, enquanto que a caridade de fonte religiosa nunca o pode ser. Ainda um outro exemplo: certas organizações ou movimentos proclamam-se orgulhosos das suas opções (exemplo: o «orgulho gay»); mas esses mesmos repudiam e contestam as opiniões dos outros que não concordam com a homossexualidade, e reconduzem essas opiniões aos chamados «crimes de ódio» — conceito que, em toda a milenar história humana de opressões e violências, ainda não tinha lembrado ao diabo. Impondo «ad libitum» uma boa «choice» e uma má «choice», um amor bom e um amor mau, um orgulho bom e um ódio mau, um evidente combate de Estado cultural (Kulturkampf) vigora; e, em nome da liberdade, do mesmo passo atacando ferozmente o liberalismo e condenando doutrinas alheias.
  5. Para não chamar agora à colação as repetidas resoluções abusivas do Parlamento Europeu (em matérias nas quais esse Parlamento não tem competência, mas interessam ao PREC da nova hegemonia cultural, como sobre o aborto, a ideologia dos géneros e a educação sexual das crianças e adolescentes nas escolas estatais e até privadas), destaque-se, a propósito do espírito anti-liberal, a bomba atómica que foi recentemente largada sobre os americanos (mas com seguros efeitos colaterais por todo o mundo), pela candidata do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton. Veio em vários sítios noticiosos da Internet que, num meeting famoso (na VI cimeira anual “Mulheres no Mundo”, no Lincoln Center, em Manhattan), a senhora Clinton terá proferido, no passado dia 24 de Abril, as seguintes palavras: «Deep-seated cultural codes, religious beliefs and structural biases have to be changed». «Laws have to be backed up with resources and political will». O que quer dizer, na citação de uma ilustre personalidade portuguesa, que a senhora Clinton defendeu que: «Os códigos culturais profundamente arraigados, as crenças religiosas e as fobias estruturais têm que ser modificadas. Os governos devem usar os seus recursos coercivos para redefinir os dogmas religiosos tradicionais». É espantoso! Será preciso rebuscar no caixote do lixo ideológico da história para encontrar expressões tão primárias de totalitarismo de Estado.
  6. Se há coisa evidente é que, em tudo isto, um desígnio de «hegemonia cultural» está em marcha, no Ocidente, prosseguido por uma política de «rupturas culturais» a golpes estatais de legislação e de sentenças judiciais livres, qual nova edição do velho «Kulturkamf» — política poderosamente imposta com meios financeiros internacionais diluvianos, que já nem cuida de se fingir racional. Em nossa opinião, a sua origem está no celerado relatório Kissinger, que propôs a estratégia secreta norte-americana contra a famigerada «bomba demográfica mundial»; estratégia visivelmente em plena execução, não apenas nos espaços públicos de opinião, mas já dominando as instituições públicas, nacionais e internacionais quem quiser informar-se, pode ver aqui.
  7. Seria muito interessante, para a teoria e para a praxis, abrir, a propósito, um debate sobre esta estratégia norte-americana de segurança, proposta de verdadeira subversão cultural internacional, nos termos do relatório Kissinger, contra a cultura livremente consensualizada no quadro ocidental de vida democrática. E relacionar esse documento com o «processo revolucionário em curso», em vista de uma nova hegemonia cultural, e as teses do marxista italiano Gramsci — que de certo modo remodelou (se é que não inverteu) as teses marxistas originais de Marx-Engels, precisamente com base na ideia de uma hegemonização cultural, em substituição da via da revolução pela violência física. O que é de algum modo novo é como esta hegemonização cultural se pode fazer com base numa aliança entre o dinheiro do capitalismo maltusiano internacional e o lobbysmo cínico sobre a democracia.
  8. Assim, olhando a actualidade norte-americana, depois de Bill Clinton ter protagonizado destacadamente os «new democrats» (que foram uma versão centrista dos democratas, uma «Third Way» democrata-liberal, quando ainda vencia na opinião pública a glória dos liberais-conservadorismos vitoriosos de Reagan e de Thatcher), vem agora Hillary Clinton, sua mulher e companheira partidária, protagonizar uma outra versão de «new democrats», desta vez exactamente em sentido inverso, de esquerda progressista-autoritária, um liberalismo oposto ao espírito liberal dos pais fundadores da democracia americana.
  9. Onde está, no relatório Kissinger e nas declarações de Hillary Clinton, o espírito liberal e humanista da declaração de direitos fundamentais da democracia americana? Para se fazer uma comparação designadamente com as declarações já citadas da senhora Clinton, recordemos aqui o primeiro e o último dos articulados da «Bill of Rights»: «Section 1. That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety.» «Section 16. That religion, or the duty which we owe to our Creator, and the manner of discharging it, can be directed only by reason and conviction, not by force or violence; and therefore all men are equally entitled to the free exercise of religion, according to the dictates of conscience; and that it is the mutual duty of all to practise Christian forbearance, love, and charity toward each other.»
  10. O que hoje vemos na deriva ideológica jacobina, nos Estados Unidos da América, e se espalha pelo mundo ocidental, é uma traição ao liberalismo humanista e democrático, que, na «Bill of Rights», afirmou bem claramente a íntima ligação entre direitos humanos fundamentais, Estado de direito democrático e reverência religiosa. É preciso dizer claramente que o desígnio da senhora Clinton, de configurar as crenças a partir do dinheiro e do poder de Estado é desígnio de Estado totalitário.
  11. Aos que, de várias sensibilidades sociais, contudo resistem à tentação diabólica do poder para configurar o mundo, e pelo contrário querem virtuosamente manter o poder de Estado limitado ao serviço da dignidade da pessoa humana, cuja base é a sua liberdade e a sua responsabilidade pessoais, permita-se-me opinar aqui que Jesus Cristo é o modelo supremo do «liberal». Liberal porque defendeu a mesma inteira autonomia para todos: para os outros, igual como para si; e nunca usou nem do poder do dinheiro, nem do poder político para impor ideias, separando bem entre poder (César) e consciência pessoal (Deus). E ainda liberal porque, não obstante, «se impôs a si mesmo» a suma virtude — que apenas propôs também, mas civilmente, à liberdade de consciência dos outros. O máximo que se permitiu, com muita razão, foi dirigir palavras ásperas bem duras aos hipócritas.
Eis como o verdadeiro espírito liberal casa bem a liberdade e a virtude, a suma liberdade e a suma virtude, desejando viver e deixar viver, sem indiferença de coração — antes com todo o coração.

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