A maioria intermitente

FRANCISCO ASSIS Público, 24/12/2015

1.Afinal de contas, e de resto sem grande surpresa, a nova maioria de esquerda está condenada a viver em estado de intermitência. Não podia ser de outra forma, dadas as profundas divergências que a atravessam, as quais se manifestarão sempre que estiverem em causa decisões nos domínios das políticas europeia, económica e financeira. Ontem, o que estava em causa no Parlamento era a aprovação de uma proposta de Orçamento Rectificativo apresentada pelo Governo a propósito do processo de resolução de um banco que já tinha sido anteriormente objecto de intervenção pública. No futuro surgirão outros temas e outras decisões propiciadores de idênticas expressões de desagregação política da base de sustentação parlamentar do actual Executivo. Uma conjectura desta natureza não envolve qualquer exercício de adivinhação, funda-se estritamente num simples acto de constatação da realidade. O Bloco de Esquerda e o PCP, partidos que até agora se tinham auto-excluído do famigerado “arco da governação”, não alteraram – e disso têm mesmo feito gala – os seus respectivos posicionamentos doutrinários a ponto de se constituírem como parceiros constantes de uma solução parlamentar investida de responsabilidades governativas. Quando se trata de revogar, de reverter ou de repor – tudo situações que remetem para uma apreciação crítica da acção do Governo anterior – é relativamente fácil associar os votos de toda a esquerda parlamentar; já será diferente sempre que os verbos forem outros – reformar e realizar.

O Partido Comunista e o Bloco de Esquerda não poderiam ter actuado de outra forma relativamente ao Orçamento Rectificativo, sob pena de cometerem verdadeira apostasia política. Reconheça-se, aliás, que uma parte significativa do país se identifica com o posicionamento crítico por eles adoptado. O PCP manteve-se fiel ao propósito de nacionalização do sistema bancário e o Bloco de Esquerda colocou condições congruentes com o seu discurso histórico sobre esta matéria. Quanto a isso nenhum deles pode ser objecto de censura. Pelo contrário, mereceriam ser vergastados se renunciassem à sua identidade mais profunda. A questão não se coloca, por isso, no plano da apreciação da legitimidade do comportamento de cada um dos partidos de esquerda mas, antes, na avaliação do mérito de um projecto político baseado no pressuposto de um entendimento entre eles. Sobre isso já escrevi o suficiente em ocasiões anteriores.
2.Pedro Passos Coelho já o tinha anunciado na semana passada e na votação do Orçamento Rectificativo tornou-se oficial: a coligação de direita acabou. O CDS-PP, votando ao lado da extrema-esquerda parlamentar, iniciou o caminho de regresso a um tipo de discurso não isento de uma boa dose de populismo, algo que o caracterizou em épocas anteriores. Nisso irá muitas vezes disputar tempo de antena com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista. Até que ponto se afastará o CDS de alguns consensos a que se viu constrangido por força da sua conjuntural condição de partido do Governo? Esta questão é das mais interessantes que se colocam neste processo de reorganização do sistema partidário português. Não é impossível que Paulo Portas venha a recuperar a prazo um discurso de tom marcadamente nacionalista, com a consequente adopção de um comportamento muito crítico face à evolução do projecto europeu. É da natureza das coisas que assim venha, provavelmente, a acontecer.
Já o PSD, superada que esteja uma primeira fase marcada pelo ressentimento em relação ao Governo socialista, tenderá a estabelecer com este uma relação mais complexa do que desejaria. Aquilo que separa estruturalmente o PS dos partidos situados à sua esquerda é precisamente o mesmo que o aproxima substancialmente do PSD: a Europa, a economia de mercado, o primado da iniciativa individual. Por muito que ambos protestem insanáveis divergências, a realidade encarregar-se-á de realçar os pontos de entendimento. É tudo uma questão de tempo. É claro que são partidos com horizontes, referências e projectos distintos, um marcadamente de centro-esquerda e outro inquestionavelmente de centro-direita. Têm, porém, muito em comum, como o comprova a história das democracias contemporâneas. Saber valorizar o que os afasta e o que os aproxima revelar-se-á da maior importância para a saúde do nosso regime político. No imediato esse exercício não será de realização fácil por razões atinentes à interpretação dos recentes resultados eleitorais. Por um lado, qualquer esforço de aproximação explícita estará condenado ao fracasso, por outro, qualquer tentativa de exacerbamento das distâncias colidirá com a pressão da realidade envolvente. Basta uma ligeira evolução na Europa no sentido da consumação de um acréscimo de federalismo institucional (coisa que bem pode acontecer no domínio da União Económica e Monetária) para que se redescubram os traçados das velhas fronteiras que à esquerda e à direita separam diferentes abordagens do projecto europeu. Então lá assistiremos ao regresso do velho bloco central europeísta rodeado de soberanistas por todos os lados.
3.A criação de uma comissão de inquérito ao que se passou com o BANIF é absolutamente imprescindível. Muito para além do jogo partidário há muitas coisas que têm que ser esclarecidas. É obviamente inadmissível, à luz de diversos princípios – nomeadamente os que se filiam na melhor tradição liberal – que o Estado venha socorrer sistematicamente instituições privadas levadas à insolvência pela ganância dos seus gestores e accionistas.

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