O Estado no seu lugar

Diário de Notícias, 20090402

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO, JURISTA

Um estudo recente revelou uma curiosa contradição entre a actual preferência dos portugueses pelo sector público e o voto maioritário em partidos políticos que propõem, nos seus programas eleitorais, as privatizações.

É possível que esta contradição seja de circunstância, determinada sobretudo por factores psicológicos que não configuram uma escolha baseada num pensamento ideológico ou, sequer, numa racionalidade política. É possível que a actual crise, particularmente em tudo o que está associado ao desmoronar de pilares do sistema financeiro, leve o cidadão comum a apelar a uma maior intervenção do Estado. Um apelo ilusório, mas securizante a curto prazo. É possível que, à cautela, nenhum partido apresente como linhas programáticas, nas próximas eleições, quaisquer medidas de privatização. Ou seja, é possível que nesta matéria as contradições desapareçam por uns tempos.

Bom prenúncio? Nem por isso. Há muito que a questão do papel do Estado é central no debate político português. Razões várias deviam ter empurrado o tema para o topo das agendas partidárias: a qualidade da democracia, a maioridade da sociedade civil, a liberdade de escolha dos cidadãos, o reforço das instituições, o valor da equidade. Num plano mais pragmático, a própria sustentabilidade do Estado social, a redução da burocracia, o combate à corrupção, a redução do défice, etc... E ainda um outro motivo não menos relevante, dada a nossa história recente: o reajustamento do Estado tal como a Constituição o consagra no "rumo ao socialismo", como um recordatório piedoso e defunctório do Estado que temos e que, por essa via, cresceu ocupando espaços e conteúdos funcionais que lhe não pertencem, e do Estado moderno que devíamos ter.

Esta crise veio pôr a descoberto as fragilidades do sector privado, a falta de ética empresarial de alguns, o fraco sentido de responsabilidade de outros, a ganância de muitos. Mas também as fragilidades do Estado em matérias tão importantes como a regulação e a supervisão. E pôs ainda a nu a fraqueza das instituições.

Agora, sem debate, sem enquadramento, afundados numa crise cujos contornos e consequências não dominam, sentindo-se enganados nas suas expectativas e dominados por uma gigantesca fraude cuja origem certa desconhecem, presumindo conluios inconfessáveis entre poderes públicos e sector privado, os cidadãos clamam pelo Estado. Não pelos órgãos de soberania, note-se, que lhes merecem cada vez menos confiança, mas por essa semiabstracção que é o Estado, tal como o vêem, tão grande, tão forte e tão rico, que parece ser a única tábua de salvação no meio desta tormenta.

Uma ilusão compreensível, mas uma ilusão. Porque este Estado é o mesmo Estado que descura a sua missão, as suas funções próprias e inalienáveis ao mesmo tempo que insiste em se imiscuir na vida dos cidadãos. O mesmo Estado que não consegue ter uma justiça célere e equitativa, uma escola que forme as novas gerações, uma segurança actuante face à crescente sofisticação da criminalidade, políticas sociais consistentes que reduzam a pobreza e a exclusão. O mesmo Estado que usa meios coercivos para cobranças indevidas, que fustiga a classe média, que pôs 500 milhões de euros do fundo de pensões da Segurança Social no BPN. O mesmo Estado qual coutada gerida pelos aparelhos dos sucessivos governos, permeável a tantos interesses, gerador de obscuras promiscuidades. O mesmo Estado que, deixando por regular matérias tão importantes, faz leis de duvidosa aplicabilidade e se lança, com desmedido entusiasmo, na tarefa de nos invadir a vida, impedir as escolhas, impor os comportamentos. E que num país onde quase tudo o que realmente importa e é da sua competência está por fazer legisla agora sobre a quantidade de sal permitida em cada carcaça.

Pode ser que, no curto prazo, a crise absolva este Estado, mas isso de nada nos valerá. Do que precisamos não é de menos nem de mais Estado mas do Estado no seu lugar.

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