Não vale a pena entrevistá-lo

DN 20090423

Maria José Nogueira Pinto

No que se refere ao Presidente da República, Sócrates optou pela subtileza ao conceder-lhe um generoso benefício da dúvida e criou a chamada alternativa diabólica: ao Governo compete governar, ao Presidente da República compete dissolver a Assembleia da República se considerar que o normal funcionamento das instituições está comprometido. As críticas duras do Presidente ao Governo teriam de ter, em boa lógica institucional, esta consequência. Como nada indica que Cavaco Silva faça tal coisa, então as suas palavras não se dirigem a ele, Sócrates, nem ao seu Governo. São meras observações de bom-senso que todos subscrevem e que a oposição, desesperada, tenta aproveitar.

Quanto ao caso Freeport, interrogado como se estivesse na Judiciária, Sócrates aproveitou a deixa para fazer o óbvio: o seu silêncio não é culpa mas respeito pelas instâncias competentes; está tranquilo e confia na justiça; os seus adversários julgam que estão num qualquer país da América Latina; ele leu Kafka e não pensem que o vencem desta forma; não processa jornalistas mas difamadores.

Entre uma coisa e outra debitou os dossiers, com números a sustentarem um voluntarismo positivo e confiante. Afinal, como ele próprio diz, o que faz falta ao País é um líder que o inspire e puxe pelas suas energias. Ou seja, ele próprio.

O maior problema em Portugal não é tanto o de não sabermos a verdade das coisas mas o de nos termos conformado com isso. Abdicamos, todos os dias, do nosso direito de cidadãos a saber a verdade dos factos, tal como já perdemos o sentido do direito a sermos informados do porquê dos factos. São muitas as formas subtis de uma democracia degenerar, bastando manter as aparências através da mera formalidade legal. Nós, portugueses, temos os aspectos formais em grande estima e raramente nos sobra tempo e paciência para querer ver mais fundo.

Vem isto a propósito da entrevista do primeiro-ministro e de outras coisas bem mais graves, que o ruído de fundo do pequeno facto político sistematicamente obnubila e que têm a ver com os nossos direitos, liberdades e garantias, numa sociedade que se vai deslassando. É o caso do projecto de lei do BE sobre o fim do sigilo bancário. Tal medida até que poderia considerar-se oportuna se sobre ela, à semelhança de outras leis que têm sido aprovadas nesta legislatura, não recaíssem as piores suspeitas. O Bloco, aproveitando esta maré de cloaca, apresenta a medida sob a capa de uma intenção respeitável, quando o que na realidade quer é um pouco de folclore populista e assestar uma pancada no sistema, sendo, por vocação, um partido confortavelmente assistémico. O PS vai atrás porque não tem opção dadas as circunstâncias, mas nenhum deles acredita que esta medida seja decisiva para o fim que formalmente pretende alcançar. Os ladrões e vigaristas com contas bancárias que vale a pena espiolhar estão identificados e provavelmente vão beneficiar da impunidade geral que nenhuma lei tem conseguido eliminar. Uma vez aprovada a lei, quem garante seja o que for, a todos os que não têm nada a esconder? Numa democracia amadurecida, numa sociedade forte, num quadro claro de exercício de direitos e deveres, esta lei não afligiria, mas num país cujas instituições estão tão enfraquecidas que funcionam mal ou não funcionam de todo, esta medida vai ser usada como, por quem e contra quem?

Esta é a outra face da mesma moeda. Para além de Sócrates, o entrevistado, qual Alice no país das maravilhas, temos a outra personagem que não se revela no pequeno ecrã. É urgente afastar a cortina de fumo e perceber o que nos está a acontecer.

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