Em Sintra não comem frango?
PÚBLICO, 30.04.2009, Helena Matos
Viana do Castelo, Braga e Cascais fazem companhia a Sintra nesta nova bandeira do politicamente correcto dos direitos dos animais ou mais precisamente dos direitos de alguns animais. Tanto mais que este tipo de medidas dá boa imprensa. Tão boa que ninguém se lembra de confrontar os partidos com o duplo critério que adoptam neste assunto. Ou será que o BE, que apresentou a proposta do fim das touradas em Sintra - proposta essa que só teve os votos contra do PCP e de alguns dos eleitos do PS -, também vai propor o mesmo tipo de regulamento em Salvaterra de Magos, única autarquia presidida pelo BE e onde apresentar um regulamento destes implicará com quase toda a certeza perder as eleições?
Estranhamente, a preocupação com o sofrimento dos animais que tanto incomoda os autoproclamados defensores dos touros vivos - convirá não esquecer que se acabarem as touradas ninguém investirá na criação de touros bravos, logo os touros bravos passarão a touros bravos desaparecidos - não se aplica a animais menos telegénicos. A mim, por exemplo, impressiona-me muito mais a morte dos peixes do que as touradas, as matanças ou as chegas de bois. Tenho uma atávica dificuldade em entender como há quem se divirta em campeonatos de pesca e exasperam-me aquelas boas almas que passam horas imóveis, de cana de pesca na mão, à espera que um peixe morda o anzol para em seguida o deixarem morrer asfixiado. Mas não creio que fosse aceitável que um regulamento semelhante ao que foi aprovado em Sintra, Cascais ou Viana do Castelo impedisse a pesca desportiva ou outra qualquer em nome da condenação do sofrimento físico e psicológico dos peixes.
Acontece simplesmente que as touradas vivem hoje, em Portugal, um momento equivalente ao que aconteceu há algumas décadas com o fado. Consoante as épocas, o fado foi acusado de degenerar a raça ou de ser reaccionário e não havia escritor ou artista que não se sentisse na obrigação de declarar o seu nojo por aquilo que consideravam um arrazoado acanalhado de canções de faca, alguidar e ciúme.
Até um acontecimento com características populares como a Grande Noite do Fado não merecia o menor interesse quer aos militantes da canção popular quer ao estudiosos que todos os dias lastimavam que o povo preferisse ouvir rádio em vez de cantar nas mondas e nas ceifas.
Como nesses tempos não existia a figura de ministro da Cultura, o mesmo não vivia o embaraço de surgir nas fotografias ao lado de fadistas e guitarras. Hoje o fado passou de canção cantada em Portugal para uma espécie de praga nacional: à excepção daqueles que, como é o meu caso, não cantam nada, parece existir um fadista dentro de cada português. Nos locais mais recônditos do país organizam-se noites de fado e fala-se do dito como se a Severa fosse lá da terra. E, claro, os políticos e as elites já não têm vergonha de aparecer ao lado dos fadistas. Ensina aliás a última campanha presidencial que ter uma mandatária que cante fado, como aconteceu a Cavaco Silva com Kátia Guerreiro, é uma vantagem muito acrescida sobre os outros candidatos que também escolheram cantores para mandatários mas especializados noutros estilos supostamente mais modernos mas certamente menos eficazes na hora de fazer esquecer aos auditórios que o candidato ainda não chegou - veja-se o caso de Manuel Alegre com Pacman.
Não sei se as touradas conseguirão fazer o percurso do fado e recuperar a popularidade. Logo nada me chocaria que as mesmas deixassem de existir, em Portugal, por falta de público. O que me parece um claro abuso de poder por parte dos autarcas é arrogarem-se o direito de decidir que determinados espectáculos não terão lugar nos respectivos concelhos. Agora são as touradas e os circos. Amanhã podem ser as feiras, os concertos dum determinado tipo de música, uma peça de teatro ou outro espectáculo qualquer. É sempre fácil arranjar argumentos para legitimar uma proibição.
Presumo que nas próximas autárquicas a questão das touradas não suscite especial interesse. Mas neste país onde o poder central e local já achou um sinal de progresso proibir toques de sinos, procissões e piqueniques, neste mesmo país onde uma autarquia achou por bem adquirir um cinema que mantém mais ou menos fechado (falo do São Jorge, em Lisboa), unicamente para impedir que uma igreja pouco institucional ali se instalasse, conviria perceber o que pensam os diversos candidatos não sobre as touradas mas sim sobre o direito a decidirem acerca dos espectáculos e eventos que podemos frequentar. Jornalista (helenafmatos@hotmail.com)
- "Vão empandeirados como animais, mas lá vão..." Esta frase surge num conto de Miguel Torga, Renovo, que dá conta do caminho de morte que uma gripe doutros tempos deixava por aquelas aldeias serranas que constituíam o universo de Torga.
A dado momento os mortos eram tantos que o prior, para não desmoralizar ainda mais os vivos, proibiu o sacristão de tocar o sino aquando dos funerais. E foi aí que o Eusébio, assim se chamava o sacristão, proferiu aquele "Vão empandeirados como animais, mas lá vão..." Concluía Torga que "até aquela alma rude sabia que, embora triste, sempre era uma nota de vida e de dignificação o sino a anunciar um trespasse humano". Torga só escreveu isto porque não conheceu Sebastião Cabila, também ele sacristão, residente em Setúbal e não morto pela gripe, mas sim a pontapé. A morte de Sebastião Cabila não gerou grandes notícias e, apesar de serem vários as pessoas que assistiram ao espancamento que o matou, ninguém quis intervir. Dois homens, ainda por cima imigrantes, não são suficientes para quebrar a indiferença que mascara o medo daqueles que vivem em localidades onde se deixou de acreditar na polícia.
Por isso Sebastião Cabila, ex-sacristão, foi para o outro mundo empandeirado tal como outrora iam os cães.
- Os porcos, os mexicanos e os sensíveis. Como os muçulmanos e os judeus não comem carne de porco, o político israelita Yakov Litzman logo aventou que o ideal seria a presente gripe passar a ser designada por mexicana e não por suína. Argumenta o autor da ideia que assim nem os judeus nem os muçulmanos se sentiriam ofendidos ou quiçá impuros com a alusão aos porcos. Os mexicanos, esses, não é suposto que se sintam ofendidos com a proposta. Mas engana-se quem achar que o caso se esgota aqui. Cada nova ameaça de catástrofe ressuscita o que se procura escamotear em cada país: no Egipto, a minoria cristã saiu para a rua em defesa dos seus 300 mil porcos que as autoridades daquele país resolveram abater para prevenir a gripe suína. Ou, como dizem os cristãos, resolveram abater, ao contrário do que se está a fazer no restante mundo, simplesmente porque a maioria muçulmana considera os porcos impuros. Em Portugal, como se sabe, o nosso problema não é a intolerância religiosa mas sim a mania das doenças. Já está meio país colado às televisões à espera do caso português e é com zanga e desilusão que se constata que a comissão entretanto criada para acompanhar esta gripe suína não tem nada de catastrófico para nos anunciar.
A preocupação com o sofrimento dos touros parece não se aplicar a animais menos telegénicos
Por enquanto talvez ainda comam, mas certamente que vão deixar de comer, pois o novo Regulamento de Animais de Sintra estabelece que os animais não podem sofrer psicológica ou fisicamente naquele concelho. É certo que o dito regulamento para já apenas se destina aos espectáculos - como os circos e as touradas -, mas quem já entrou num aviário certamente comprovou o sofrimento psicológico e físico experimentado pelos frangos e demais seres de pena que se encontram nos ditos estabelecimentos. O mesmo regulamento, se fosse para ser levado a sério, poderia conduzir à extinção as reservas de caça existentes no concelho, pois, como se supõe, a felicidade não é propriamente um estado de alma entre as espécie cinegéticas na época da caça. Seja em Sintra ou em qualquer outro lugar.Viana do Castelo, Braga e Cascais fazem companhia a Sintra nesta nova bandeira do politicamente correcto dos direitos dos animais ou mais precisamente dos direitos de alguns animais. Tanto mais que este tipo de medidas dá boa imprensa. Tão boa que ninguém se lembra de confrontar os partidos com o duplo critério que adoptam neste assunto. Ou será que o BE, que apresentou a proposta do fim das touradas em Sintra - proposta essa que só teve os votos contra do PCP e de alguns dos eleitos do PS -, também vai propor o mesmo tipo de regulamento em Salvaterra de Magos, única autarquia presidida pelo BE e onde apresentar um regulamento destes implicará com quase toda a certeza perder as eleições?
Estranhamente, a preocupação com o sofrimento dos animais que tanto incomoda os autoproclamados defensores dos touros vivos - convirá não esquecer que se acabarem as touradas ninguém investirá na criação de touros bravos, logo os touros bravos passarão a touros bravos desaparecidos - não se aplica a animais menos telegénicos. A mim, por exemplo, impressiona-me muito mais a morte dos peixes do que as touradas, as matanças ou as chegas de bois. Tenho uma atávica dificuldade em entender como há quem se divirta em campeonatos de pesca e exasperam-me aquelas boas almas que passam horas imóveis, de cana de pesca na mão, à espera que um peixe morda o anzol para em seguida o deixarem morrer asfixiado. Mas não creio que fosse aceitável que um regulamento semelhante ao que foi aprovado em Sintra, Cascais ou Viana do Castelo impedisse a pesca desportiva ou outra qualquer em nome da condenação do sofrimento físico e psicológico dos peixes.
Acontece simplesmente que as touradas vivem hoje, em Portugal, um momento equivalente ao que aconteceu há algumas décadas com o fado. Consoante as épocas, o fado foi acusado de degenerar a raça ou de ser reaccionário e não havia escritor ou artista que não se sentisse na obrigação de declarar o seu nojo por aquilo que consideravam um arrazoado acanalhado de canções de faca, alguidar e ciúme.
Até um acontecimento com características populares como a Grande Noite do Fado não merecia o menor interesse quer aos militantes da canção popular quer ao estudiosos que todos os dias lastimavam que o povo preferisse ouvir rádio em vez de cantar nas mondas e nas ceifas.
Como nesses tempos não existia a figura de ministro da Cultura, o mesmo não vivia o embaraço de surgir nas fotografias ao lado de fadistas e guitarras. Hoje o fado passou de canção cantada em Portugal para uma espécie de praga nacional: à excepção daqueles que, como é o meu caso, não cantam nada, parece existir um fadista dentro de cada português. Nos locais mais recônditos do país organizam-se noites de fado e fala-se do dito como se a Severa fosse lá da terra. E, claro, os políticos e as elites já não têm vergonha de aparecer ao lado dos fadistas. Ensina aliás a última campanha presidencial que ter uma mandatária que cante fado, como aconteceu a Cavaco Silva com Kátia Guerreiro, é uma vantagem muito acrescida sobre os outros candidatos que também escolheram cantores para mandatários mas especializados noutros estilos supostamente mais modernos mas certamente menos eficazes na hora de fazer esquecer aos auditórios que o candidato ainda não chegou - veja-se o caso de Manuel Alegre com Pacman.
Não sei se as touradas conseguirão fazer o percurso do fado e recuperar a popularidade. Logo nada me chocaria que as mesmas deixassem de existir, em Portugal, por falta de público. O que me parece um claro abuso de poder por parte dos autarcas é arrogarem-se o direito de decidir que determinados espectáculos não terão lugar nos respectivos concelhos. Agora são as touradas e os circos. Amanhã podem ser as feiras, os concertos dum determinado tipo de música, uma peça de teatro ou outro espectáculo qualquer. É sempre fácil arranjar argumentos para legitimar uma proibição.
Presumo que nas próximas autárquicas a questão das touradas não suscite especial interesse. Mas neste país onde o poder central e local já achou um sinal de progresso proibir toques de sinos, procissões e piqueniques, neste mesmo país onde uma autarquia achou por bem adquirir um cinema que mantém mais ou menos fechado (falo do São Jorge, em Lisboa), unicamente para impedir que uma igreja pouco institucional ali se instalasse, conviria perceber o que pensam os diversos candidatos não sobre as touradas mas sim sobre o direito a decidirem acerca dos espectáculos e eventos que podemos frequentar. Jornalista (helenafmatos@hotmail.com)
- "Vão empandeirados como animais, mas lá vão..." Esta frase surge num conto de Miguel Torga, Renovo, que dá conta do caminho de morte que uma gripe doutros tempos deixava por aquelas aldeias serranas que constituíam o universo de Torga.
A dado momento os mortos eram tantos que o prior, para não desmoralizar ainda mais os vivos, proibiu o sacristão de tocar o sino aquando dos funerais. E foi aí que o Eusébio, assim se chamava o sacristão, proferiu aquele "Vão empandeirados como animais, mas lá vão..." Concluía Torga que "até aquela alma rude sabia que, embora triste, sempre era uma nota de vida e de dignificação o sino a anunciar um trespasse humano". Torga só escreveu isto porque não conheceu Sebastião Cabila, também ele sacristão, residente em Setúbal e não morto pela gripe, mas sim a pontapé. A morte de Sebastião Cabila não gerou grandes notícias e, apesar de serem vários as pessoas que assistiram ao espancamento que o matou, ninguém quis intervir. Dois homens, ainda por cima imigrantes, não são suficientes para quebrar a indiferença que mascara o medo daqueles que vivem em localidades onde se deixou de acreditar na polícia.
Por isso Sebastião Cabila, ex-sacristão, foi para o outro mundo empandeirado tal como outrora iam os cães.
- Os porcos, os mexicanos e os sensíveis. Como os muçulmanos e os judeus não comem carne de porco, o político israelita Yakov Litzman logo aventou que o ideal seria a presente gripe passar a ser designada por mexicana e não por suína. Argumenta o autor da ideia que assim nem os judeus nem os muçulmanos se sentiriam ofendidos ou quiçá impuros com a alusão aos porcos. Os mexicanos, esses, não é suposto que se sintam ofendidos com a proposta. Mas engana-se quem achar que o caso se esgota aqui. Cada nova ameaça de catástrofe ressuscita o que se procura escamotear em cada país: no Egipto, a minoria cristã saiu para a rua em defesa dos seus 300 mil porcos que as autoridades daquele país resolveram abater para prevenir a gripe suína. Ou, como dizem os cristãos, resolveram abater, ao contrário do que se está a fazer no restante mundo, simplesmente porque a maioria muçulmana considera os porcos impuros. Em Portugal, como se sabe, o nosso problema não é a intolerância religiosa mas sim a mania das doenças. Já está meio país colado às televisões à espera do caso português e é com zanga e desilusão que se constata que a comissão entretanto criada para acompanhar esta gripe suína não tem nada de catastrófico para nos anunciar.
Comentários
Claro que há sofrimento inevitável. Nos animais racionais e nos irracionais. Coontra isto pouco se pode, por ora fazer. É a lei da sobrevivencia. O gato come o rato, o cão mata o gato, o homem e o tigre comem carne e assim por diante.
Quanto ao sofrimento por divertimento (ou será por negócio?). ou retomamos Roma ou vamos eliminá-lo, progressivamente. Já acabaram os gladiadores e as feras no Circo, já não se pescam baleias nos Açores e os outros espectáculos e divertimentos do mesmo género serão,naturalmente abandonados. A decisão tomada em Sintra vem nesse sehntido e é, a todos os títulos, louvável.
Prefiro, por isso que se mantenha o fado que não faz mal a ninguém e às vezes até é agradável de ouvir.
Quanto a desaparecerem os touros bravos. Bem e, quem pensa nos burros (os asininos, claro) que estão a desaparecer por falta de utilidade.
Ainda a propósito: não conheço ninguém que cobre entradas nos aviários ou nas pocilgas para exibir aos aficcionados o espetáculo do sofrimento desses animais.
João Faria