Vida longa sem futuro
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.07.15
O mundo está a mudar muito e depressa. Isto todos dizem; mas as mutações mais influentes são aquelas de que poucos falam. É corrente admirar-nos com as transformações causadas pelos telemóveis ou redes sociais, mas as maiores alterações da vida são na vida.
Um dos elementos mais influentes da actualidade é o espantoso aumento da longevidade. Em média vamos todos viver muito mais do que os nossos pais. A esperança de vida ao nascer, que era de 38 anos em 1920 e de 64 em 1960, está já nos 80 anos e a previsão do INE é que seja 90 anos por volta de 2060. Isto é suficiente para transformar totalmente a existência.
A causa directa são os avanços na saúde. Quando há poucos anos se começou a morrer mais de doenças crónicas do que infecciosas, tal significou que nos conseguimos defender de agressões externas, expirando só quando o corpo atinge os seus limites. Este efeito é muito mais influente na vida das pessoas do que qualquer impacto económico, social ou político.
Infelizmente o mundo evolui muito mais depressa do que a nossa compreensão, pelo que as ideias sociais, económicas e políticas pouco se adaptaram. Vamos viver muito mais tempo, mas as nossas regras e instituições, da Segurança Social aos preconceitos, mal tomam isso em conta. Por exemplo, a palavra "idoso" devia transformar o seu sentido. Há duas gerações alguém com 50 anos aproximava-se do fim; hoje ainda tem quase tanto para viver quanto já viveu. Por outro lado, se a morte foi adiada, a infância prolongou-se. Antes um jovem de 15 anos era adulto; hoje muita gente com 30 só pensa no recreio e nos cromos.
Ao aumento da idade juntam-se outras mudanças igualmente radicais. No Censo português de 1950 havia 8% de pessoas a viver sozinhas e 22% em famílias com cinco ou mais elementos. O Censo de 2011 tem as posições invertidas, com 21% de pessoas sós e 2% em agregados superiores a quatro. Há muitas causas para isto, mas as principais são outras dinâmicas demográficas: queda da fertilidade, descida dos casamentos e aumento do divórcio. Em 1961 o número de filhos por mulher era superior a três, descendo em 2014 para 1,2; o número de casamentos por mil habitantes caiu no mesmo período de nove para três enquanto os divórcios subiam de 0,1 para 2,2. Esta transformação na família, incomparável em rapidez e efeitos com qualquer anterior, é mais influente na nossa existência do que outro efeito que se possa considerar.
Antigamente as pessoas, mesmo muito pobres, tinham ranchos de filhos, muitos dos quais morriam à nascença. Hoje, em que todos, mesmo desempregados, vivemos muito melhor, atribui-se à crise a falta de condições para ter filhos. Apesar de se insistir em relações conjugais precárias, a pior dessas condições. Outro elemento relevante são os contraceptivos baratos e eficazes. Antes não havia escolha, e cada acto sexual podia gerar parto; agora, não só se pode controlar isso, mas até se criou um novo direito básico, ao aborto gratuito, para tratar dos poucos casos em que a criança surja. Porque há coisas muito mais atraentes e divertidas do que tratar de um bebé, criança ou adolescente; que, na esmagadora maioria dos casos, é mesmo só um.
Sem descendência, há menos razões para poupar e a dívida fica mais atraente. Além disso, com poucos jovens, que não votam, e muitos idosos que votam, o país acaba legalmente concebido para velhos. Tudo isto traduz-nos desequilíbrios sociais que a troika identificou: economia descapitalizada, consumo excessivo, pensões generosas que arruínam o Estado e leis de protecção dos empregados bloqueando a entrada dos novos. Assim se gera a dívida externa, défice orçamental e desemprego jovem. A crise actual vem daqui, e não será a última.
Esta dramática transformação na vida já teve enormes efeitos, mas os seus resultados finais ainda não são fáceis de antever. Muitos se assustam ou empolgam com a evolução, mas ninguém realmente a entende. Há demasiados efeitos a acontecer simultaneamente, que ainda não terminaram de evoluir. Temos de admitir a nossa ignorância. Apesar dos visionários preverem o futuro, pouco de seguro se pode antever.
Só podemos dizer que o mundo será certamente muito diferente daquilo que é, e do que alguma vez foi, pois nunca tanto aconteceu ao mesmo tempo. Mas, sem adivinhar o fim da revolução, não é arriscado conjecturar que teremos velhices longas, confortáveis e solitárias, sem herdeiros e sem linhagem. Muitas famílias e tradições desaparecerão, por os seus membros terem sacrificado a descendência à gratificação imediata numa vida longa.
Comentários