Caridade não, caridade nunca!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador 25/7/2015
A estranha ideologia dos que abominam a justiça que dizem exigir e que exigem a caridade que dizem abominar.
O problema de alguns governantes, gregos e não só, não é político, nem financeiro, mas espiritual. Descreve-se com poucas palavras: odeiam a caridade, mas querem viver à sua custa. Há pessoas, partidos políticos e países que morrem desta doença, que é progressiva, degenerativa e mortal. É viciante como as drogas, e pega-se.
É da essência das ideologias extremistas uma profunda aversão pela caridade. Ninguém que nelas milite e seja ciente dos seus contra-valores, aceita, por mais miserável que seja, um óbolo. Seria aviltante, vergonhoso, indigno. Para comprovar que assim é, basta ouvir os slogans que, punho em riste, ora com a mão fechada, ora com a palma aberta, se costumam ouvir em certas manifestações: ‘Não queremos esmolas! Não aceitamos caridade!’
Exigem justiça mas, ao mesmo tempo, reivindicam o que não lhes é devido. Dispensam favores, mas querem fundos a que, como sabem, não têm direito. Ou seja, abominam a justiça que dizem exigir, ao mesmo tempo que exigem a caridade que dizem abominar! Decididamente, a coerência não é o seu forte.
Esta abominável ‘caridade’, que nada tem a ver com a homónima virtude cristã, é, pois, um vício politicamente incorrecto. É algo que uma mente evoluída e altruísta não só desdenha como deve desprezar, como dantes se dizia nas cantigas de escárnio e maldizer.
Porquê? Porque esta tal ‘caridade’ são quermesses de senhoras que, à conta dos pobrezinhos, organizam tômbolas, peditórios, sorteios, jantares de gala e festas que, segundo os extremistas do costume, só servem para a promoção e exibição social e mediática dos protagonistas. Porque esta ‘caridade’ é a mão cheia de anéis que, com luva, por precaução higiénica, despeja alguns trocos nas sujas manápulas do incómodo pedinte. Porque, concluindo e resumindo, a ‘caridade’ é o disfarce da hipocrisia de quem finge ter preocupações sociais quando, na realidade, quer que se mantenha o status quo que gera essas injustiças gritantes. É por tudo isto, e o que fica por dizer, que a ‘caridade’ é tão detestável para os iluminados extremistas.
Embora essa visão da caridade seja uma triste caricatura, que esquece a imensa beneficência de que a verdadeira virtude é responsável em todo o mundo, uma tal crítica pode ter, mais por via de excepção do que por regra, alguma objectividade. Mas não se pode maldizer a caridade e, depois, exigi-la em proveito próprio. Talvez seja criticável a atitude de quem entende que o amor ao próximo são chazinhos e canastas, mas não é menos caricata a figura de quem exige ajudas, a que não tem direito, ao mesmo tempo que afirma detestar esmolas! Pode haver alguma duplicidade no propósito de solidariedade social de um chiquérrimo baile de debutantes, mas quem diz abominar os favores e anda sempre a pedi-los, não é menos hipócrita.
Pedir?! Não, quem assim pensa e actua não pede nada, porque acha que tem direito a tudo. Com efeito, estas ideologias teoricamente anti-caridade mas, na prática, mendicantes, têm um estilo próprio: a arrogância. Este idioma selvagem, que também se encontra em outros quadrantes e figuras políticas, é comum aos extremismos opostos, o que explica estranhas alianças entre forças partidárias diametralmente contrárias (ou talvez não) como, por exemplo, o odioso pacto Hitler-Stalin. São casamentos em regime de separação de bens ideológicos, mas em comunhão de poderes e interesses adquiridos. Uniões politicamente contraditórias mas onde não há problemas de comunicação, porque falam todos a mesma linguagem e alimentam idênticos ódios de estimação. Para além da mesma ânsia de um poder totalitário, partilham, em casta comunhão, o mesmo estilo ofensivo, prepotente, arrogante. Por isso, quem assim se define, não pede, exige! Não fala, grita! Nunca diz ‘por favor’, nem nunca dirá ‘obrigado’.
É isto, numa palavra, o que mais dói a esses revolucionários de um e outro extremo: a humildade de ter que pedir uma ajuda a que, como sabem, não têm direito. Se há quem, inchado de orgulho, considere insuportável a humilhação de estender a mão à caridade, não o faça, mas então honre os seus compromissos, pagando o que deve. E depois, viva com o que for seu. Ninguém é obrigado a pedir, nem ninguém tem que dar o que não é devido a quem nem sequer é capaz de reconhecer, ou de agradecer, a ajuda que se lhe dá.
Não tem por que ser humilhante pedir uma esmola de que desesperadamente se necessita, a não ser que seja algo a que se tenha direito. Não tem por que se agradecer o que é dado a título de justiça porque, nesse caso, quem dá não faz mais do que a sua obrigação. Mas, se a dádiva não foi concedida em condições imorais, nem é devida por uma razão legítima, é então um autêntico dom e, por isso, seria de facto vergonhoso que não fosse reconhecida como tal.
Pode ser muito triste para alguém, para algum partido ou para um governo, pedir esmola, mas é muito pior recebê-la de má vontade, não saber agradecer o que, não constituindo uma obrigação jurídica ou moral, foi dado por favor. Por pura caridade.
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