Homilia do bispo do Porto na solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, Dia Mundial da Paz

Como nasceu a paz, como renascerá agora!
1.Amados irmãos: Neste primeiro dia de 2013, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus e Dia Mundial da Paz, começo por vos saudar vivamente, a todos e cada um dos que viestes a esta Sé, imagem vetusta e acolhedora da Santa Madre Igreja, como se figura no Porto. Tanto quanto o possa fazer, desejo-vos do fundo do coração de Deus as maiores felicidades pessoais, familiares e sociais, para o ano que começa hoje. Felicidade que, para nós, significa graça divina e vida pascal, no Espírito de Cristo, que sempre desafia, corrige e alarga a simples expectativa humana. E, com isto mesmo, desejo-vos aquela paz que os anjos proclamaram no nascimento de Cristo e não deixam de bradar a quem os oiça: «Paz na terra aos homens!».
O Evangelho que escutámos começou com estas palavras: «Naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura». De tantas vezes que foi apresentado, este quadro bíblico gravou-se na mente e no afeto de todos nós, evocando-nos o presépio em que Jesus nasceu. Já nem o imaginaríamos doutro modo e, na verdade, este mesmo é essencial e bastante.
Das várias e legítimas representações de Cristo, o presépio e a cruz são certamente as essenciais e, por isso mesmo, inultrapassáveis para os crentes que somos e queremos ser. E, assim sendo, são também as mais legítimas e atraentes, o que não deixa de constituir um profundo mistério, ou seja, uma inegável verdade. De facto, quem pensaria num estábulo para o nascimento divino e quem pensaria numa cruz para entronizar um rei? Ninguém os imaginaria assim, antes que acontecessem, porque, antes de serem conclusão nossa, são oferta de Deus, gratuita e, por fim, convincente. Verdade que é imprescindível fonte de paz, pois esta não se alcança nem perdura a não ser na coincidência que tivermos com a realidade das coisas, a maior realidade das coisas e das vidas, aquela que só da Fonte se recebe.
Assim sendo, “entremos” de algum modo no quadro que São Lucas ilustrou. Não o achemos desprovido demais, nem o enfeitemos com a fantasia ou o gosto, pessoais ou alheios. Aceitemo-lo, para já, na simplicidade e inteireza com que foi coado pelas primeiras gerações cristãs. Sem demasiadas palavras, pois se trata de Palavra incarnada do próprio Deus; não são precisas mais imagens, porque aquele Menino é a própria imagem do Deus invisível.
Concentremo-nos então em cada personagem. E, começando pelos pastores, diz-se que se dirigiram apressadamente para Belém… Não eram grande gente, nem muito considerada, aqueles pastores antigos. Viviam nos campos, tratavam de animais e eram gente pobre. Porém, não hesitaram em acorrer aonde os mandavam e “apressadamente” o fizeram, até verem o Menino, que adoraram também.
Mas isso mesmo nos levará a acorrer, urgentemente acorrer, a tudo o que for pequeno e frágil, aí mesmo onde Deus nos espera, fazendo-se pequeno para nos fazer pequenos, paradoxal tamanho do Reino dos Céus, isto é, da Cidade da Paz. Indica-o, sem margem de dúvida, outro passo evangélico: «Jesus chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe”» (Mt 18, 2-5).

2.Intitulada “Bem-aventurados os obreiros da paz”, a Mensagem do Papa Bento XVI para este dia oferece-nos um resumido mas substancial compêndio da Doutrina Social da Igreja, para quanto respeite à justiça e à paz. Com óbvio relevo para a defesa e a promoção da vida, dizendo assim: «Caminho para a consecução do bem comum e da paz é, antes de mais nada, o respeito pela vida humana, considerada na multiplicidade dos seus aspetos, a começar pela conceção, passando pelo seu desenvolvimento até ao fim natural. Assim, os verdadeiros obreiros da paz são aqueles que amam, defendem e promovem a vida humana em todas as suas dimensões: pessoal, comunitária e transcendente. A vida em plenitude é o ápice da paz. Quem deseja a paz não pode tolerar atentados e crimes contra a vida» (Mensagem, nº 4).
- Que oportunidade, irmãos, que responsabilidade tamanha, se verdadeiramente procuramos a paz! Estando Deus aí mesmo, na vida em gestação, dentro ou já fora do ventre materno, como se torna prioritária a promoção e salvaguarda de cada vida humana, no arco total da sua existência terrena!
A fragilidade da vida uterina ou a fraqueza e enfermidade que a atinjam depois, são outros tantos apelos a que acorramos céleres – como os pastores do Evangelho – ao seu cuidado preciso, solidário e eficaz. Qualquer hesitação neste ponto, qualquer amolecimento cultural ou legal em relação a ele, é absolutamente um atentado à paz. À paz das consciências, que, quanto a isto, nunca adormecerão tranquilas, antes somarão pesadelos; e à paz das famílias e de sociedades inteiras, se contemporizarem com qualquer tipo de antinatalismo ou reducionismo existencial.
A tão mencionada “qualidade de vida”, deve significar, antes de mais, o reconhecimento da qualidade que ela essencialmente tem e sempre conserva, mesmo quando física ou mentalmente atingida. A paz – enquanto harmonia íntima e global de tudo quanto representa a verdade das coisas, começando pela verdade das pessoas – é obra e fruto da justiça, que nos manda dar a cada um o que lhe é devido e pertence. E a vida é a primeiríssima pertença de cada ser humano.

3.Também aqui não havemos de ter medo, nem de nos sentirmos esmagados por uma responsabilidade aparentemente incomportável, face à insensibilidade de outros em relação a este ponto fundamental. Quando o cristianismo nasceu, no Menino do Presépio, toda a grandeza do céu era pequeníssima na terra, e em grande contraste com o que se fazia naquele imponente Império Romano, no respeitante à vida humana. A escravatura era uma realidade geral e aceite; o aborto prática corrente; e o próprio bebé já nascido estava sujeito à vontade paterna, para continuar ou não a viver… Alguma reflexão filosófica, como a dos estoicos, já criticava estas últimas práticas; mas foi, inegavelmente foi, a progressiva expansão evangélica nas inteligências e nos costumes que, pouco a pouco, conseguiu modificar positivamente as coisas, na legislação inclusive. É por isso muito estranho que alguém se lembre de apresentar hoje em dia como “progressos civilizacionais” autênticas regressões de dois mil anos, desprotegendo a vida em todo seu verdadeiro percurso, pré e pós natal. Sobretudo, quando a ciência nos demonstra agora, com toda a evidência, o desenvolvimento duma mesma vida desde o momento da sua conceção. - Há muito o faz a liturgia cristã, celebrando a Anunciação do Senhor em cada 25 de março, nove meses precisos antes do seu Natal!
Não tenhamos receio de, também neste ponto, «confessarmos Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da nossa esperança a todo aquele que no-la peça; com mansidão e respeito…» (cf. 1 Pe 3, 15). Ofereçamo-la mesmo a quem não a peça ainda, certos como estamos de que a verdade que nos chama a nós também chama a todos, como os pastores o foram ao pleno presépio de Cristo. Façamo-lo com atitudes concretas de salvaguarda e proteção da vida, respondendo da melhor maneira aos casos que surjam e apoiando todas as iniciativas nesse sentido, como já existem e hão de aumentar na nossa sociedade.
Há aqui muita urgência, semelhante à pressa com que os pastores acorreram ao pobre lugar onde Deus nascia no mundo. E convençamo-nos da verdade sempre comprovada: a decisão certa que tomamos hoje abre o amanhã que Deus nos oferece. Também aqui poderíamos aplicar a passagem bíblica: «Como deve ser santa a vossa vida e a vossa piedade, enquanto esperais e apressais a chegada do dia de Deus; […] nós esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habita a justiça» ( 2 Pe 3, 11-13). 

4.Outras figuras nos mostrou o Evangelho ao redor daquele Menino em que nascia a paz, o «eterno menino de ainda agora», como magnificamente lhe chamou um escritor seiscentista (Padre Manuel Bernardes): Maria e José, luminosamente. Com eles e nos sentimentos que tiveram em relação a Jesus, encontraremos a paz e a maneira dela acontecer, nos corações e no mundo.
Sobretudo nas famílias, de dificuldades acrescidas nos tempos que correm. Não lhes falte a esperança, com a fé e a caridade em que a vida divina se faz sua também, nelas continuando o que o Evangelho nos deu a contemplar. Nas dificuldades que atravessarem, nunca estarão sós, recorrendo – sempre e além do mais – à lembrança viva e à companhia certa daqueles que primeiro viveram com o Filho de Deus feito homem. Como escreveu o Beato João Paulo II, na exortação apostólica que tão oportunamente dedicou ao pai adotivo de Jesus: «Um tal vínculo de caridade constituiu a vida da Sagrada Família; primeiro, na pobreza de Belém, depois, durante o exílio no Egito e, em seguida, quando ela morava em Nazaré. A Igreja rodeia de profunda veneração esta Família, apresentando-a como modelo para todas as famílias. […] Juntamente com a assunção da humanidade, em Cristo foi também “assumido” tudo aquilo que é humano e, em particular, a família, primeira dimensão da sua existência na terra» (Redemptoris Custos, 21). Jesus, Maria e José não se pouparam a nada, para estarem connosco em tudo. É esta a razão mais profunda da nossa paz.   
De novo vos recordo, caríssimos irmãos e irmãs, que o Papa Bento XVI nos dirigiu uma Mensagem para este Dia Mundial da Paz, oferecendo-nos um autêntico compêndio das principais propostas da Doutrina Social da Igreja em relação à vida, à família, à economia e à sociedade em geral. Bom será e também urgente que a leiais e estudeis, pessoalmente e em grupo, nas famílias e comunidades cristãs. Neste momento complexo e exigente que vivemos, no país e além dele, temos responsabilidades irrecusáveis, até pelo facto do continente europeu e da sua União em curso denotarem uma essencial contribuição cristã, que não há de faltar agora.
- Para todos e para as vossas estimadas famílias, desejo-vos um feliz 2013, que seja verdadeiramente, em cada dia e ocasião, pleno da graça e da paz de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Sé do Porto, 1 de janeiro de 2013
D. Manuel Clemente, bispo do Porto

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