O regresso
Durante muito tempo, o Governo - e, em especial, o ministro das Finanças - foi prematuramente criticado por falhar o que ainda não tinha falhado: o objectivo do défice (mesmo cozinhado com receitas extraordinárias), a teimosa resistência em pedir qualquer alteração às condições dos empréstimos da troika, o regresso aos mercados da dívida pública. Eram críticas que se compreendiam em parte, até porque as suspeitas não eram as melhores, mas também mostravam a pressa com que os políticos são julgados.
É justo reconhecer que o regresso de ontem aos mercados da dívida pública, com grande procura externa, é um facto importante e um triunfo do ministro das Finanças, que aproveitou os resultados do défice, a "folga" dos pagamentos da troika e a bem-sucedida "boleia" do êxito da Irlanda para colocar dívida do Estado a um juro que, embora elevado, ficou abaixo dos 5%. Não ver isto, não querer ver pelo menos isto, em nome de duas ou três teorias da conspiração, achar que a agitação e a displicência perante os credores continuam a ser a nossa via-sacra, parece francamente irrealista e perigoso. Talvez se perceba agora que a conversa suave de Gaspar com Schauble, que há um ano tanto enfureceu alguns "patriotas", não era uma humilhação auto-infligida pelo homem. A Europa fez, de facto, a sua parte. O BCE ajudou decisivamente, e ainda pode ajudar mais. E Portugal recuperou, para já, alguma credibilidade externa, na expectativa de que o BCE venha ainda a ser mais generoso.
Mas, por outro lado, pensar que a confiança que, entretanto, foi possível readquirir nos mercados e na Europa significa que a austeridade e a reforma da despesa pública podem, de alguma maneira, abrandar, é não estar a ver o filme. Queira ou não o Governo, queira ou não o PS e as suas diferentes facções, nós vamos ter mesmo austeridade durante anos. Precisamos dela. Ninguém nos livra da necessidade de uma nova disciplina financeira que nos traga equilíbrio e fiabilidade. As coisas são o que são. Porque Portugal é o que é e tem as debilidades que tem. Não é a Irlanda, a Islândia ou a Espanha. E a solidariedade dos outros não é uma caixa ilimitada. Por isso, não se compreende que António José Seguro tenha vindo dizer que o Governo fez precisamente aquilo que o PS andou a propor desde o ano passado. O facto é que o Governo não pediu mais tempo à Europa para "ajustar" a austeridade que o PS tanto tem criticado. O Governo só pediu mais tempo para pagar os empréstimos da troika. É certo que a austeridade não é tudo, mas não se enganem: ela não acabou, nem irá acabar.
É preciso, portanto, perceber o que é, o que não é e o que não deve ser este regresso aos mercados. Para o país e para o Governo, é um sinal de que a credibilidade e a soberania financeira estão a ser recuperadas e de que o acesso ao financiamento passará a estar mais facilitado na economia. O que não é: um milagre, uma mudança na nossa situação financeira, que continua calamitosa, a certeza de uma saída feliz e a prova de que não seremos forçados a reestruturar a dívida. Por fim, que não se veja aqui um pretexto cómodo e ilusório para o Governo deixar de fazer as reformas do Estado que precisa. Este regresso não é, por muito que nos custe, o fim da austeridade. Nem pode ser o fim das reformas. Não é uma viragem. É só um começo.
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