O animalismo e os seus perigos

Daniel Oliveira
Expresso,  Sexta feira, 18 de janeiro de 2013
Vou, agora que o ambiente serenou um pouco, voltar ao caso do cão que matou a criança. Não para o discutir, mas para falar do que ele revela. O abaixo-assinado para impedir o abate do Zico não tem grande importância? Ele, propriamente dito, não a terá, por isso não merece que se perca mais tempo com o assunto. Mas o que ele revela é bastante importante. E fala-nos de uma civilização desnorteada.
Sou um relativista. Ou seja, reconheço que os valores pelos quais nos regemos são construções culturais e históricas. E sou capaz de tentar compreender e contextualizar, mesmo que não os aceite, valores bem diferentes porque foram construídos em contextos diferentes. Mas, como relativista, até relativizo o meu relativismo. E posso reconhecer que ele tem riscos importantes. O mais importante: desfoca de adquiridos morais que, não sendo universais, são resultado de uma tradição histórica. Não desfoca apenas da tradição conservadora que justifica a desigualdade e a crueldade entre humanos. Desfoca da tradição progressista. Desfoca até do iluminismo.
Nessa tradição, reconhecemos em todos os humanos direitos fundamentais. Esses direitos não dependem das qualidades ou defeitos de cada humano individualmente considerado. São iguais para Mahatma Gandhi e para Adolf Hitler, para Nelson Mandela e Anders Breivik. Porque se justificam na condição humana, partilhada pelos piores e pelos melhores, única forma de serem aplicáveis de forma não discricionária. De todos esses direitos, o mais importante é, seguramente, o direito à vida. Que se baseia neste postulado simples: nenhum humano tem o direito a tirar a vida a outro com a exceção de em conflito com essa interdição estar a proteção da vida de outro humano.
O direito à vida não é inato. Na realidade, como presas potenciais, a natureza não dá a nenhum animal, nem mesmo os humanos, o direito de viver até ao limite das suas capacidades biológicas. Ele foi determinado pelos humanos para os humanos. E o que explica este adquirido civilizacional, que infelizmente está longe de ser universal, é a absoluta excecionalidade que atribuímos à vida humana. E isso resulta da nossa cultura humanista.
O homem atribuiu (foi ele que atribui) muito recentemente direitos aos animais. Na realidade, como escreveu Henrique Monteiro, tratam-se de deveres dos humanos para com os animais. Assim como tem deveres para com o Planeta. Mesmo em relação aos animais, eles são necessariamente diferenciados para animais sencientes e não sencientes, mamíferos e restantes, domésticos e selvagens, o cão ou o parasita que o incomoda. E, mesmo dentro das mesmas categorias, não tratamos da mesma forma um gato e uma vaca. Na realidade, se prestarmos atenção, esta estratificação baseia-se, não por acaso, na proximidade emocional ou biológica que o animal tem em relação a nós. Ou seja, continuamos a ser nós, para nós próprios, a medida de todas as coisas. Pelo contrário, não estratificamos os humanos nos seus direitos e deveres. Com uma única exceção: damos às nossas crias, que estão mais indefesas e ainda não receberam o legado moral para distinguirem o bem do mal, o justo do injusto, o certo do errado, muito mais direitos do que deveres.
Resumindo: os direitos dos animais não são uma antecâmara dos direitos dos humanos. Estão num outro patamar, porque assumimos que os próprios sujeitos desses direitos não nos são comparáveis. Apesar de, do meu ponto de vista, estarem errados nos principais pressupostos, mesmo autores mais empenhados, como Peter Singer, têm o cuidado de tentar não criar uma confusão absoluta entre conceitos incomparáveis.
Voltemos então aos defensores do Zico. O "animalismo" ou "anti-especismo" renega todas as base do humanismo, que assume a excecionalidade da condição humana, capaz de fazer uso da sua liberdade. E essas bases partem de um pressuposto: há, entre os humanos, um pacto de fraternidade. E esse pacto resulta da convicção de que partilhamos a mesma condição na terra. Ele é, por natureza, impossível de ser partilhado por espécies que não sejam, nem possam vir a ser, dotadas de consciência moral e ética. Ou seja, dotadas de uma extraordinária capacidade: a do uso consciente da liberdade.
Renegar a excecionalidade do homem é renegar todas as conquistas civilizacionais fundamentais. Quem pensa que, tal como antes se aceitava a escravatura, como resultado de uma desigualdade ontológica entre seres humanos, hoje aceita o "antropocentrismo", não podia estar mais enganado na causa e consequência das coisas. Foi por atribuirmos à vida de todos os seres humanos um estatuto absolutamente excepcional que a escravatura nos pareceu inaceitável. Exatamente porque se assumiu que o homem tem a potencialidade irrepetível de ser livre. Ao colocar as relações humanas no mesmo patamar que as relações com os animais a escravatura torna-se aceitável, porque desprezamos essa excecionalidade que a liberdade humana nos confere. Se eu sou dono de cães e de gatos, numa relação necessariamente desigual - e que só pode funcionar se for desigual -, porque raio não hei de ser dono de pessoas? Se eu mato animais para me alimentar, porque raio não hei de matar seres humanos para garantir a minha subsistência?
O que realmente me assusta é que este fenómeno essencialmente urbano de humanização dos animais (que só pode resultar de uma crescente distância em relação à natureza, que perdeu a consciência de que os humanos, como os restantes animais, vivem num meio que lhes é hostil), parecendo apenas uma mera excentricidade, ganhou dimensões que desconhecíamos. No caso do último abaixo-assinado, a que aderiram mais de 70 mil pessoas, vimos até políticos de tradição marxista a, por convicção ou mero sentido de oportunidade, assinar um documento que, sem o saber, é perigosíssimo do ponto de vista filosófico. E esta tentação de abarcar todas as causas pode bem levar as correntes políticas que têm no humanismo a sua principal origem a abandonarem as bases filosóficas fundamentais para os seus principais combates: que todos os homens devem ser iguais em direitos e deveres. Porque, caros amigos, os animais, e contra isso nada podemos fazer, nunca o serão. Falta-lhes a cultura e a história. Falta-lhes, para ironizar um pouco, a revolução francesa.

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