Discutir o Estado social sem falar de recuos civilizacionais
Temos sistemas de protecção que, além de pouco eficientes, por vezes são iníquos. Mesmo assim, parecem intocáveis
Um dos paradoxos da actual discussão sobre a reforma do Estado é a contradição insanável entre o discurso "social" dos que não querem mudar nada (nem poupar nada) e a realidade "associal" de alguns dos nossos sistemas públicos de protecção aos mais desfavorecidos. Porque um dos segredos mais bem escondidos do nosso "Estado social" é este ser menos "social" do que parece: em vez de realmente proteger os mais desfavorecidos, garante com frequência certas benesses dos que têm mais. Isso sucede nos sistemas de pensões, educativo e de saúde, mas é tema tabu. Suspeito mesmo que a fúria das corporações contra o relatório do FMI resulta mesmo de este deixar essa realidade bem clara: "Por comparação com vários outros países da OCDE e da UE, as transferências sociais em Portugal asseguram mais benefícios a grupos sociais com maiores rendimentos do que a grupos com menores rendimentos, agravando as desigualdades".
Não se trata de uma constatação original, pois consta também de um estudo da OCDE (What are de best policy options for fiscal consolidation?), onde se mostra que 65% das transferências sociais vão para a metade da população que ganha mais. Isto ocorre porque, como escreveu Luciano Amaral em Economia Portuguesa, As Últimas Décadas (2010), um ensaio da FFMS, "a despesa social em Portugal tem carácter regressivo, ou seja, não beneficia preferencialmente aqueles com rendimentos mais baixos, mas, antes pelo contrário, alguns grupos sociais com rendimentos próximo ou acima da média". (Note-se que estas conclusões não são contrariadas por um dos artigos publicados esta semana no Boletim de Inverno do Banco de Portugal, pois dele se exclui o sistema de pensões, quando são estas prestações as que mais dinheiro consomem).
A leitura cuidadosa de todos estes relatórios e artigos - e não apenas dos seus sumários executivos ou das conclusões - permite encontrar pontos de vista nem sempre coincidentes, algumas áreas menos estudadas e até identificar erros (menores) de análise (como sucede no relatório do FMI). Não é, contudo, possível iludir três problemas que os situacionistas se recusam a admitir. O primeiro desses problemas é o que nos faz estar a ter, por fim, esta discussão: o nosso Estado social custa mais do que os portugueses parecem estar dispostos a pagar por ele em impostos e em taxas. O segundo problema deriva de, em muitas áreas, esse Estado social não produzir resultados proporcionais ao dinheiro que consome, ou seja, ser pouco eficiente e gerar muitos desperdícios. O terceiro e mais perturbador dos problemas é o nosso Estado social ser, em muitas áreas, um factor de iniquidade em vez de promover a diminuição das desigualdades e uma redistribuição mais justa dos rendimentos.
Continuar a negar estes três problemas, e recusar-se a qualquer debate porque, nos dias ímpares, os do FMI são uns vendidos ao Governo, ou porque, nos dias pares, é o Governo que não passa de um bando de colaboracionistas, não é apenas enfiar a cabeça na areia: é o equivalente intelectual a negar a lei da gravidade porque se acha que podemos voar.
Vejamos o sistema de pensões. Este, para ser justo, deveria assegurar algum grau de equidade entre os que trabalham e financiam o orçamento e os que já estão reformados. Deveria igualmente assegurar algum equilíbrio entre gerações. Ora o nosso sistema de pensões, depois da mais recente reforma, ao mesmo tempo que melhorou a sustentabilidade de longo prazo, criou distorções graves no curto e médio prazo. Manteve uma enorme diferença entre as regalias dos trabalhadores do sector privado e os que beneficiam da Caixa Geral de Aposentações. Basta dizer que a pensão média da CGA é três vezes mais elevada do que a pensão média no regime geral, apesar de os trabalhadores da função pública se reformarem, em média, mais cedo. Dentro da CGA criou-se também uma clivagem entre os que já eram trabalhadores do Estado antes de 1993 e todos os que entraram depois, conservando os primeiros as condições mais favoráveis que existiam antes da reforma. Finalmente, acentuou-se a diferença entre os mais novos e os mais velhos: os primeiros têm hoje de descontar mais do que os seus pais e avós e receberão muito menos do que estes quando se reformarem.
Por que é que nessa reforma de 2007 não corrigiram estas iniquidades? A resposta é simples e é política: é fácil retirar direitos a quem olha para a reforma como uma coisa ainda longínqua (os trabalhadores mais novos), é mais difícil retirá-los a quem já começou a contar os dias para se reformar. Tomaram-se decisões erradas porque, no fundo, se seguiu a máxima esta semana lapidarmente expressa por José Lello a propósito da ADSE: não se deve tocar nos interesses das bases eleitorais dos partidos que exercem o poder.
Este tipo de comportamento dos agentes políticos foi estudado por James Buchanan, o Prémio Nobel da Economia que morreu a semana passada. Na sua teoria da escolha pública ele explicou-nos como grupos de interesses especiais podem condicionar os poderes políticos, levando a aumentos da despesa pública que basicamente os favorecem. Ou seja, Buchanan mostrou que não existem apenas "falhas do mercado" que os Governos devem corrigir, há também "falhas dos Governos" (mesmo dos Governos democráticos, e até por serem democráticos) das quais as sociedades devem defender-se.
É por isso que, quando olhamos para o actual debate, não podemos vê-lo apenas, ou sobretudo, como uma forma de cortar quatro mil milhões nas despesas do Estado. Isso é necessário e, do meu ponto de vista, até constituiu uma oportunidade para conseguir fazer aquilo que o Banco de Portugal voltou a recomendar: diminuir o peso que o Estado representa para a economia privada, dando a esta espaço para respirar e, assim, crescer e criar riqueza. Mas isso é também insuficiente. Os problemas de iniquidade e de ineficiência do nosso Estado social só se resolvem, no médio prazo, questionando o seu modelo. Esse é o debate que só muito marginalmente estamos a ter.
Uma das coisas mais absurdas e mais tristes da forma como se debate em Portugal é a incapacidade das nossas elites para se libertarem de preconceitos. Isso traduz-se nessa espécie de dogma que ocupou as rádios, as televisões e os jornais: o nosso modelo de Estado social é "o modelo", só podemos discutir a sua eficiência; tudo quando seja sair desse espaço tolerado é um "retrocesso civilizacional". Ora sucede que o nosso modelo de Estado social está longe de ser o único, mesmo na Europa.
O dogma português no sistema de pensões, na educação e na saúde é tipicamente napoleónico: o Estado central define o que devem ser as prestações sociais, e ao mesmo tempo actua como provedor de serviços e como regulador desses serviços. Ou seja, ocupa todas as funções e, idealmente, comanda tudo a partir do Terreiro do Paço. Não tinha de ser assim, não tem de ser assim e dificilmente teremos, no futuro, um Estado social sustentável se mantivermos este modelo.
O princípio geral deste tipo de Estado social é que há uma espécie de bondade intrínseca na actuação das autoridades públicas e uma maldade congénita em tudo o resto. Já vimos como, mesmo em democracia, isso é falso. Temos agora de acrescentar que países com Estados sociais bem mais antigos, generosos e eficientes do que o nosso, como a Suécia, a Holanda, o Reino Unido ou a Alemanha, ou nunca tiveram este modelo centralizador e absoluto, ou têm vindo a trocá-lo por outras fórmulas que, em última análise, devolvem poder aos cidadãos e, assim, ajudam a compensar as "falhas do Governo" sem cair nas "falhas dos mercados".
No curto prazo talvez consigamos cortar quatro mil milhões sem mudar muito a arquitectura do nosso Estado social. No médio e longo prazo necessitamos de modelos mais maleáveis, onde todos tenham mais liberdade e sejam mais responsabilizáveis, do cidadão ao burocrata sentado no Terreiro do Paço. Os que se preocupam realmente com a equidade, e não os que andam preocupados em repetir frases grandiloquentes sobre a igualdade, sabem que também aqui chegámos ao fim de uma linha e que é necessário mudar e reformar para sobreviver. Voltarei a estes temas e às novas ideias nas próximas semanas.
Comentários