O espectro de 2009 e a gripe dos economistas

Diário de Notícias, 20090106
João Miguel Tavares
Jornalista - jmtavares@dn.pt

O 6-6-6 já era. Parece que o novo número do apocalipse é 2-0-0-9. Os jornais, as revistas, as televisões, os políticos, os economistas e basicamente todas as pessoas munidas de cordas vocais e acesso a microfones tremem em uníssono assim que vislumbram ao longe a temível sequência de quatro dígitos. É pena o papel de jornal não ter som, porque este artigo ganharia muito em vir acompanhado de banda sonora, uma coisa pesada, assustadora e trágica - talvez a música das facadas do duche no Psico de Hitchcock, com os violinos estridentes. Tremei, homens de pouca fé. Aposto que na Igreja Universal do Reino de Deus a leitura da Bíblia já é acompanhada pelas previsões do Wall Street Journal.

Infelizmente, o povo cada vez liga menos aos jornais, às revistas, às televisões, aos políticos e aos economistas, e por isso, na última semana, quando passei pelo El Corte Inglés e pelo Freeport Alcochete, andei às cotoveladas por entre a multidão que insistia em consumir desvairadamente, indiferente aos avisos do fim do mundo. Tivesse eu um banquinho à mão e teria trepado para cima dele e começado a berrar como um profeta: "Emendai-vos, irmãos, emendai-vos! Porque não estais vós em casa a forrar as entranhas dos colchões com notas de euro? Desconheceis que vem aí uma recessão daquelas só vistas nos filmes americanos sobre a década de 30?"

Pelos vistos, desconhecem. Por mais que Cavaco fale "verdade", eles desconhecem. E sabem porque é que desconhecem? Porque neste momento boa parte da classe média, que é quem costuma pagar as crises, não está a pagar crise nenhuma - bem pelo contrário. Quem se endividou numa casa, está a desembolsar muito menos dinheiro. Quem enchia o depósito com 60 euros, agora enche com 40. Quem, como eu, gosta de comprar uns livros e uns filmes na Amazon inglesa, tem a libra abaixo de 1,1 euros, coisa nunca vista desde que deixei de usar calções. E, sobretudo, quem se encontra entre os 708 507 funcionários públicos ou entre os 1,76 milhões de reformados, só terá um 2009 pior do que 2008 se Portugal entrar em falência, como a Islândia. E essa hipótese nem Vasco Pulido Valente levantou. Donde, para uma parte substancial da população portuguesa - aquela que tem emprego firme e não investe em acções -, esta famosa crise é assim uma espécie de gripe das aves: um perigo muito perigoso que anda para aí no ar, mas que não se chega a sentir. Longe de mim dizer que a crise não existe. Que isto está mau, está. Está mau para os ricos. Está mau para as empresas. Está mau para os desempregados. Mas para os milhões de portugueses que se abrigam debaixo da longa sombra do Estado há muito tempo que isto não estava tão bom.

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