Entrevista a Alice Vieira: "Aconteceu uma coisa terrível na Educação: tudo tem de ser divertido, nada pode dar trabalho"
Público, 19.01.2009 - 08h42 Bárbara Wong
É por causa dos seus livros que Alice Vieira é convidada para ir às escolas. Há 30 anos, falava de “Rosa, minha irmã Rosa” aos alunos dos 3.º e 4.º anos, hoje fala sobre o mesmo livro aos estudantes dos 7.º e 8.º. “Alguma coisa está mal”
A escritora Alice Vieira começa por dizer que de educação percebe pouco. “Nunca fui professora na minha vida!”, justifica. Mas há três décadas que anda pelas escolas e observa o que se passa no mundo da educação. O retrato que faz, reconhece ser “assustador”: professores com fraca formação, alunos que não compreendem o que aprendem. Defende mais disciplina e mais autoridade para a escola. Quanto à luta dos docentes confessa, bem disposta: “Saúde e Educação seriam os ministérios que nunca aceitaria!”. Teme que se a contestação continuar o ano lectivo possa estar perdido.
Esta é a segunda greve de professores, este ano lectivo. Em que é que estas acções influenciam a qualidade da escola pública?
Os professores têm um calão muito próprio e gostava que um professor e a senhora ministra da Educação se sentassem e me explicassem o que é que é a avaliação? O que é que os professores têm que fazer? Para eu perceber! Os professores dizem que têm muitas fichas para preencher. Que tipo de fichas? O que é que a ministra quer fazer com aquilo?
Sente que a opinião pública tem as mesmas dificuldades em compreender o que se passa?
A maior parte não compreende e os professores queixam-se disso mesmo. Eu não quero acreditar que o que se passa é como aquela anedota, em que “todos vão com o passo errado e só o meu filho é que vai no passo certo”. O descontentamento é geral e quando 140 mil professores vêm para a rua, é óbvio que devem ter razão, mas não têm toda. A ideia que tenho, desde o princípio é de que a ministra tem razão em querer que os professores sejam avaliados, mas ela não sabe transmitir o que quer.
Isso reflecte-se no modo como as negociações têm sido conduzidas?
Sim, é visível nos vai-e-vem. Agora avalia-se assim e depois já é de outra maneira... As pessoas não sabem muito bem o que é ou não é. A ideia que passa é que os professores não querem trabalhar, que não querem ser avaliados e é fácil veicular essa ideia porque os professores são um grupo complicado.
Porquê?
Porque chegam a uma certa altura da carreira, têm os seus direitos adquiridos e é mais difícil aceitar outras coisas. Chega-se a uma altura em que as pessoas estão cansadas.
Sente isso nas escolas aonde vai?
A primeira coisa que ouço dizer é: “Estou cansada”, “vou-me reformar”, “estou farta disto”, “não me pagam para isto”... É só o que eu ouço.
Mas sempre ouviu esses lamentos ou agudizaram-se nos últimos anos?
Há 30 anos que vou às escolas e ouço-o agora. As leis são iguais para todos, mas há escolas onde dá gosto ver o trabalho que os professores fazem, que estão motivados e a ministra é a mesma! Não é a totalidade das escolas, mas sobretudo nas mais afastadas, nas do interior, encontro gente motivada e a fazer bons trabalhos. Essas escolas nem vêm no ranking das melhores. Também vou a privadas, ligadas à Igreja Católica, às vezes converso com professoras minhas amigas e conto-lhes: “Os alunos entram em fila, ou levantam-se quando eu entro, não fazem barulho...”. E respondem-me: “Está bem, mas isso é nessas escolas”. E eu pergunto: “Mas se está bem para essas escolas, porque é que não está para as outras?!”
A escola pública está a perder qualidade?
Há um desinteresse, um cansaço e depois há o problema da formação. Eu não quero generalizar, mas esta gente mais nova... Qual é a preparação que tem? Converso com professores e é um susto, desde a língua portuguesa tratada de uma maneira desgraçada, até ao desconhecimento de autores que deviam ter a obrigação de conhecer... Sabem muito bem o eduquês, mas passar além disso, é difícil. Muitos professores com que lido têm uma formação muito, muito, muito deficiente. Eles fazem com cada erro, que eu fico doida! E não só falam mal como se queixam diante dos miúdos. Podem dizer mal entre eles, mas não diante dos alunos, que depois reproduzem e a balda vai ser completa. A responsabilização dos professores é fraca, eles não são muito seguros e os alunos sentem que os professores não são seguros.
E por isso há atitudes de indisciplina e de violência?
Por exemplo, as manifestações dos miúdos também me perturbam um bocadinho, porque eles não sabem o que andam ali a fazer. Os miúdos devem aprender a falar bem, para saber reclamar, reivindicar, é uma questão de educação.
Mas nesse caso a culpa não é da escola, pois não?
Também é. Os professores queixam-se muito que têm de ser pai, mãe, assistente social, educadores... Pois têm! Porque a vida dos miúdos é na escola. Em casa não lhes dão as mínimas noções de educação, o simples “obrigada, se faz favor, desculpe”. Quando os alunos vêem os professores na rua, a berrar e a gritar, o que é que eles pensam? Os alunos manifestam-se para exigir melhor ensino? Não. Não os vejo preocupados porque os professores os ensinam mal.
Com alunos e professores na rua, o ano lectivo está perdido?
Não me parece que esteja perdido, se houver bom senso. Não se pode estar a brincar. As pessoas não entendem muito bem que o maior investimento que podem fazer é na educação. Se não tivermos gente educada, a saber, capaz, o que é que vai ser de nós? Estamos a fazer uma geração que não se interessa, não sabe nada, mas berra e grita. E isso perturba-me.
Volto a perguntar, a educação está a perder qualidade?
Eu comecei a ir às escolas há 30 anos, para apresentar o meu primeiro livro “Rosa, minha irmã Rosa” e ía falar com os alunos de 3.º e 4.º anos. Agora vou, exactamente com o mesmo livro falar a alunos dos 7.º e 8.º anos. Alguma coisa está mal. É assustador! Outra coisa assustadora é a utilização da Internet.
Não concorda com o acesso dos mais novos às novas tecnologias?
Estamos a queimar etapas, a atirar computadores para os colos dos miúdos quando não sabem ler nem escrever. Só devia chegar quando tivessem o domínio da língua e da escrita.
E os mais velhos?
Os mais velhos, não sabem utilizar a Internet, não sabem pesquisar, eles clicam, copiam e assinam por baixo. Eu chego a uma escola, vou ver e fizeram 50 trabalhos sobre um livro meu, todos iguais, com os mesmos erros e tudo, porque descarregam da Internet. Pergunto aos professores e respondem-me: “Mas eles tiveram tanto trabalho a procurar...” O professor tem que ensinar a pesquisar. Às vezes, estou a falar com os alunos e tenho a sensação nítida de que não estão a perceber nada do que eu estou a dizer.
Essa sensação é generalizada?
No geral, as crianças têm muitas, muitas dificuldades. E os professores, logo à partida, têm medo que os alunos se cansem e nem tentam! “O quê? Dar isso? Eles não gostam, cansam-se”. Há um medo de cansar os meninos. Desde 1974 que os alunos têm sido muito cobaias da educação. E os professores e os alunos não sabem muito bem o que é que andam a fazer... Aconteceu uma coisa terrível é que tudo tem que ser divertido. Há duas palavras que me põem fora de mim: moderno e lúdico! Tudo tem que ser lúdico, tem de ser divertido, nada pode dar trabalho. Não pode ser!
É preciso mudar a mensagem?
Quando vou às escolas esforço-me imenso por transmitir aos alunos que as coisas dão trabalho. E eles olham para mim como se fosse uma coisa terrível. Há muitas maneiras de se abordar as coisas, mas se os próprios professores passam a mensagem de não querer ter trabalho... Quando vou ao estrangeiro, vejo os professores e penso “se fosse em Portugal, não era assim”. Eles fazem o que for preciso fazer. Cá dizem que não é da sua competência... Isso é complicado.
Disse que as escolas do interior são diferentes das de Lisboa. Essas diferenças não se devem aos públicos que cada escola acolhe?
Sim, os miúdos de Lisboa têm mais solicitações, ao passo que para os de Trás-os-Montes, a ida de um escritor à escola é uma festa! Em Lisboa já não há lisboetas, há miúdos de todas as terras, de todos os países... E porque é que os miúdos da Europa de Leste se destacam nas escolas? Porque vêm de culturas de trabalho e, desde cedo, ouvem dizer que têm quee trabalhar. Com a democracia, as portas abriram-se, a escola deixou de ser de elite e estão todos na escola. Ainda bem! Mas os professores não estavam preparados para isso e admito que é difícil.
Falta-lhes formação?
Eu gostava de saber onde é que os professores são formados! Mas tendo alunos tão diferentes é necessário fazer formação. Porque, coitados dos professores, são deitados às feras! Como se chega aos alunos? Muitas vezes, olho para eles e vejo que não estão a ouvir nada. E eu apanho o melhor da escola, a parte boa, não tenho um programa para dar. Agora, quem está todos os dias na escola, compreendo que seja um stress terrível. A educação é daquelas matérias em que, se calhar, são precisas medidas impopulares, mas necessárias. Na educação nunca se fez um salto, que é necessário, nunca houve um ministro de quem se diga “fez”.
É precisa mais disciplina?
É preciso mais autoridade, o professor não pode fazer nada, não tem autoridade nenhuma. A solução passa por mais interesse e mais disciplina. O gosto pelo que se faz. E o professor tem que sentir esse gosto e passar aos miúdos. A profissão é de risco, de missionário e não de funcionário público na acepção pejorativa da palavra. Não é uma profissão como as outras e não é seguramente a de preencher impressos...
Como é exigido na avaliação?
Voltamos à avaliação! Ela é necessária, todos nós devemos ser avaliados, mas não pelo parceiro do lado ou pelo filho do patrão! Não faço ideia de como é que se avalia, mas na educação existe gente competente, que estudou, e devia ser chamada para dizer como avaliar. Não concordo que sejam avaliados entre eles. Não se pode ser irredutível, quer dum lado [professores] quer do outro [ministério]. As manifestações, no momento a que se chegou, não levam a nada, já vimos que agita, mas não levam a nada.
Parece-lhe que o conflito entre ministério e professores não tem fim à vista?
Os professores estão cansados, o que também é mau, porque aceitar uma situação só porque já se está cansado não é bom. Tem de haver uma solução, senão o ano lectivo perde-se e o culpado não será só um.
“Tem de haver regras em casa, como na escola”
Para a escritora Alice Vieira, os pais antes de se envolverem na vida da escola, devem assumir o seu papel como primeiros educadores.
Os pais têm de ser mais envolvidos na vida da escola?
Sim, mas não podem delegar tudo na escola. A questão da violência é um reflexo do que os miúdos trazem de casa. Os pais têm que se envolver mais não apenas para saber as notas do filho ou se o professor falta. A casa é a primeira escola da criança e se em casa não recebe o mínimo de condições, não sabe como estar com os outros, chega à escola e é o que se assiste. Às vezes parece que os pais de agora têm medo de actuar, de falar com os miúdos. Tem de haver limites e os miúdos precisam e querem que esses sejam estabelecidos. Tem de haver regras em casa, como na escola.
Os pais compreendem a contestação dos professores?
Quando há uma greve, os pais pensam: “Que chatice e agora onde é que deixo as crianças?” Há muitos pais que compreendem. Agora outras camadas... Quando os professores se queixam que estão mais horas nas escolas, as pessoas pensam que eles não querem trabalhar. Mas também penso que já perceberam que os professores têm muitas razões.
As manifestações e greves podem levar os pais a transferir os filhos para a escola privada?
Antes, a escola pública era melhor. Se calhar, agora já não é por causa destas convulsões e porque os professores bons se vão reformando. Compreendo que os pais se preocupem e optem por uma privada ou por mandar os filhos para fora. B.W.
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