Bem-vindos a 2010!

Público, 02.01.2009, Graça Franco

A ameaça do desemprego é o inimigo número um a combater, mas isso não justifica ou legitima a deriva populista

Imaginemos que começou. Afinal, restam apenas 363 dias para o preparar. Aproveitando a deixa de Rui Tavares, que na sua última crónica anunciou que a condição de historiador lhe permitia refugiar-se nos próximos meses no saudoso ano de 1768, não resisti a seguir-lhe o exemplo: proponho-me avançar, quanto antes, para 2010.
Como sabem, os economistas nunca hesitam entre um regresso ao passado (onde muitas vezes se aprende com os erros) e uma fuga em frente (onde apenas nos resta a opção de evitar cometer mais alguns): avançam sempre rumo ao futuro incerto. Não espantará, assim, a minha opção, em total consonância com os meus pares. Um jornalista/economista, então, nem sequer tem outra escolha. Como jornalistas, vivemos do presente, verdadeiramente obcecados com a actualidade, presos à espuma das coisas, sempre na crista da onda. Para entendermos a profundidade da vaga resta-nos segui--la, mais velozes do que ela própria, na esperança de chegarmos à praia ainda antes de nos embrulharmos no seu embate, a tempo de anteciparmos o efeito do banho de areia. É isso que, quantas vezes desastradamente, tentamos fazer.
Aliás, devo humildemente confessar que a sugestão da fuga para a frente nem sequer é genuinamente minha. Limito-me a seguir um sábio conselho de um pároco do Norte em véspera de ano novo. Aos cristãos pessimistas (o que deveria ser uma contradição porque os detentores da Boa Nova deviam ser os últimos a cair em pessimismos...) recomendava o jovem pároco um esforço: "Os que têm mesmo fortes razões para temer um ano de 2009, a vários títulos catastrófico, façam o favor de começar então, e desde já, o de 2010, porque assim evitarão desânimos inúteis, e tristezas vãs".
Foi o que decidi fazer e vos aconselho a todos vivamente que façam. A crise é certa e não adianta esperar que passe. Mas não é o fim do mundo. Porque esse, ao contrário da crise, permanece razoavelmente incerto. Sendo assim, olhemos este dia 2 de Janeiro apenas como o trigésimo sexagésimo segundo dia que nos resta para a entrada triunfal em 2010 - o ano que a maioria dos especialistas considera poder já ser o de uma ténue retoma - e começaremos, serenos e alegres, a preparar o relançamento da economia e a reconstruir a esperança. E a esperança é irmã gémea da confiança. Essa sim, um bem escasso e raro no mercado. Ou seja, o melhor activo para assegurar uma crescente valorização.
Com um horizonte próximo e bem definido à vista, evitaremos o pior dos erros: o de, tentando, a qualquer preço, evitar os anunciados males de 2009, desperdiçarmos todos os sacrifícios do passado e hipotecarmos, de forma dramática, o próprio futuro.
Eu sei que os economistas estão divididos: entre os que, como o bastonário Murteira Nabo, consideram que faz falta investir e "já nem interessa se esse investimento é rentável ou não. O que interessa é que exista para conter o desemprego (a todo o custo)" e os que, como o Presidente Cavaco Silva, alertam para a necessidade de não perder a cabeça e não deixar de avaliar os investimentos segundo esse mais básico critério: o da rentabilidade. Só deve fazer-se (e só deve investir-se) o que garantir, para além de um efémero efeito analgésico de curto prazo, fazer parte da cura da doença ou, pelo menos, aquilo que for capaz de reforçar o próprio sistema imunitário da nossa frágil economia em estado comatoso. Entre os dois, não hesito: desta feita estou firmemente ao lado de Cavaco.
É esse o ponto. Não perder o norte. Não que, nalguns momentos, a doença económica não possa ser tão grande que obrigue a deitar dinheiro para cima dos problemas na vaga esperança que os agentes acordem, se levantem, apanhem as notas e acabem a gastá-las, mas, mesmo em momentos de pânico, conviria que a receita de Keynes não se resumisse à aparência e fosse aplicada para tratar o fundo da questão.
A caricatura da economia que se relança apenas porque alguém decide avançar com Obra Pública, encomendando que se abram e fechem buracos, não é mais do que isso: caricatura.
Diferente é destruir edifícios (desses monos/fantasmas) que povoam as nossas cidades desertas, reconstruindo-os, criando nova habitação acessível que ponha fim à desertificação do centro urbano. Diferente é pagar (mesmo endividando-se e mais uma vez a crédito perigosamente caro...) a reabilitação dos nossos espaços degradados, das nossas escolas, dos nossos hospitais, com evidente impacto na criação e protecção do emprego e da economia local, mas efeito positivo e duradoiro na melhoria das condições do futuro. Diferente é assim, por exemplo, a receita de Obama que talvez neste ponto convenha imitar.
A economia não mexerá se desperdiçarmos dinheiro (travestido de investimento) em "carpetes e floreiras" (lembram-se da metáfora de Ferreira Leite?), mesmo que, por alguns meses, isso pareça reanimar o negócio das floristas e preservar o emprego no sector dos tapetes. É preciso e possível fazer melhor.
Porque a crise é de escassez e não pode ser confundida com uma crise de abundância. O dinheiro é ainda mais escasso e caro do que era há uns meses, quando a ordem unanimemente aclamada era a da contenção da despesa e do combate ao desperdício. Do que se trata é de apenas evitar que a economia acabe a sofrer a síndroma do cavalo do inglês. Não podemos reduzir-lhe ainda mais a ração. Pelo contrário, é hora de lhe reforçar a dose de comida, mas não é boa ideia empanturrá-lo de doces para lhe prolongar a agonia, imaginando-a apenas mais doce... Claro que a ameaça do desemprego (e o risco real do seu efeito potenciador de uma explosão social agregadora de todos os descontentamentos) é o inimigo número um a combater. Os últimos alertas de Pinto Monteiro e Mário Soares são para levar a sério. Mas nem isso justifica ou legitima a deriva populista que três eleições à vista perigosamente antecipam.
Vale a pena, por momentos, esquecermos querelas, discordâncias inúteis e guerrilhas partidárias. Por uma vez tentarmos seguir o conselho presidencial, avançando para um esforço comum de reconstrução nacional. A qualidade da nossa democracia não regrediu apenas com o estatuto dos Açores, mas ele é, dos dois lados da querela, exemplar dos males que nos afectam. Tem absoluta razão Cavaco Silva quando diz que a votação da Assembleia pôs a nu, nesta questão, o facto dos partidos reféns dos interesses eleitorais regionais terem dado uma prova inequívoca de que entre o interesse partidário e o nacional não hesitam em escolher o partidário. Ainda não somos uma democracia evoluída!
Mas a verdade é que o Presidente também não nos conseguiu explicar por que é que sente que o simples dever de "ouvir" (os órgãos regionais como parceiros interessados...) é uma coisa atroz e incrivelmente limitativa do poder de decidir conforme muito bem lhe aprouver depois da audição obrigatória dos ditos parceiros.
O actual PS, fora do Socratismo oficial, não suporta "ouvir" nenhuma voz, nem divergente, nem sequer diferente, mas, de Cavaco, esperava-se um pouco mais de explicação sobre este intolerável mal do dever de audição. Fora outro o poder presidencial mexido por lei ordinária e ninguém hesitaria em tomar por suas as dores do Presidente, mas, sendo apenas este, o ponto... por mais inconstitucional que seja (e sê-lo-á, parece) já se entende pior a gravidade da coisa.
A propósito da verdade orçamental ou falta dela (no documento sensatamente promulgado), talvez valesse a pena mais umas palavrinhas de admoestação presidencial ao Governo e à Assembleia. Porque aí sim, não é indiferente que um texto legal da importância de um Orçamento acabe por entrar em vigor quando se sabe que nem nos pressupostos da previsão, nem do lado da despesa, nem do lado da receita, nada daquilo é para levar a sério ou para cumprir. Coisas! Uma coisa é desencadear uma guerra insensata de não-promulgação, outra é ser cúmplice no silêncio.
Jornalista
Nota: Texto escrito antes de conhecido o teor da mensagem presidencial de Ano Novo.

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