Um imenso Freeport

Público, 20090129

Helena Matos

É preocupante que a legislação ambiental seja usada para protecção de determinados grupos económicos

"Aquelas casas! Que horror!" Assim comentava, nos bastidores de um debate, alguém da área do PS a traça das casas cujos projectos José Sócrates garante ter assinado, embora os respectivos proprietários digam não ser ele o autor dos projectos. O tom desta frase estava algures num lugar indefinível entre o sarcasmo e a complacência. O sarcasmo nascia naturalmente da convicção enraizada no meu interlocutor de que os processos de licenciamento deveriam funcionar como uma espécie de comissão de bom gosto que tornasse pelo menos esteticamente inócuas as casinhas do povo. Afinal não há nada que irrite tanto as elites de cada época quanto a arquitectura popular sua contemporânea. Já a complacência resultava não tanto da atitude do meu interlocutor perante os actos e as opções de José Sócrates, mas sobretudo perante si mesmo.
O meu interlocutor era e é o que se pode designar como um socialista histórico. Fazia parte daquele grupo que se fizera adulto nas crises académicas dos anos 60 e 70, reforçara, depois de 74, os seus pergaminhos democráticos combatendo as tentações totalitárias dos comunistas e, durante o cavaquismo, integrara a corte de Soares em Belém. Foram mais de 20 anos a ver-se, ele e todo o seu grupo, como infinitamente cultos e superiores nas mesas espelhadas dos gabinetes. E são eles que agora têm pela frente, como seu líder, um homem que noutro contexto teriam literalmente arrasado. Por elitismo intelectual. Mas não só.
O que em Portugal distingue os socialistas das outras famílias políticas não são os seus actos. É sim a complacência perante alguns desses actos. Complacência que por razões históricas era maior no PS que nos outros partidos - no pós 25 de Abril, o PS emerge como partido e líder inevitável num país a precisar de esquecer o passado. Mas histórias recentes elevaram essa complacência para níveis preocupantes. Essas histórias têm nome. Chamam-se Casa Pia e José Sócrates. O PS terá um dia de fazer o balanço destes dois episódios distintos da sua vida, episódios em que aquele partido reagiu de igual modo perante acusações de natureza absolutamente diversa aos seus dirigentes: nos dois casos, importantes dirigentes socialistas alegaram que foram vítimas de cabalas.
Que o maior partido português, o PS, defenda que em Portugal - o mesmo país que o PS tem governado várias vezes - investigadores policiais devidamente articulados com a comunicação social e instituições da República conspiram contra os seus líderes é um caso que nos devia fazer reflectir. Porque sendo isso verdade é gravíssimo. E não o sendo também é. Porque um partido democrático, com responsabilidades de governo, não pode levantar levianamente suspeitas que descredibilizam as instituições. Esta atitude dúbia do PS, que num dia se diz vítima de cabalas e no outro quer encerrar rapidamente o assunto, conduziu os portugueses, socialistas ou não, a um pântano, no sentido guterriano do termo, mas com a assinalável diferença em relação ao autor do termo que aos restantes portugueses ninguém os convida ou coloca em cargos internacionais. Logo só podemos ficar aqui encalhados e a considerar normal hoje aquilo que na véspera designávamos como crime. E sabendo antecipadamente que amanhã flexibilizaremos ainda um pouco mais a nossa escala de valores.
Mas se do processo da Casa Pia, até pela natureza dos factos, nos resta sobretudo esperar que o tempo, ainda mais do que a justiça, traga a distância que torna mais nítidas as motivações humanas, sobretudo as menos confessáveis, já quanto às suspeitas que envolvem José Sócrates é possível e desejável que se discutam algumas coisas. Até porque José Sócrates tem razão num ponto: no caso Freeport tal como nas casinhas da Guarda estamos provavelmente perante situações legais, ou, mais propriamente, situações cuja ilegalidade não se consegue provar. E se tudo isto poderia ter acontecido com outro primeiro-ministro socialista ou não (sendo certo que se não fosse socialista a onda de indignação teria neste momento proporções bíblicas), a verdade é que casos como o Freeport tenderão a banalizar-se, porque a concepção de José Sócrates do seu Governo como uma equipa negocial de luxo a isso nos levará, sem apelo nem agravo, sobretudo quando os negócios falharem.
José Sócrates entende o aparelho de Estado como uma imensa empresa. A empresa-Estado escolhe, como no caso do Magalhães, os seus parceiros de negócios e cria legislação especial para que esses parceiros não sejam tolhidos nos seus projectos pelos mesmos entraves que se colocam ao cidadão comum. Como bem frisou Pedro Almeida Vieira no blogue estragodanacao.blogspot, hoje o processo de licenciamento do Freeport já nem se colocaria nos mesmos moldes, porque seria projecto PIN, ou seja, teria uma espécie de via verde no labirinto da burocracia e da legislação onde se desgastam todos os outros.
O que os promotores do Freeport conseguiram foi logo à partida aquilo que cada um de nós teria o direito de esperar em igual circunstância: que a decisão fosse rápida. A mim não me choca a celeridade do processo. O que me choca é a lentidão com que são tratados os outros. Muito provavelmente o Freeport nem representa uma degradação ambiental em relação à situação anterior. O que é preocupante é vermos a legislação ambiental transformada num regresso ao condicionamento industrial do salazarismo com a consequente protecção de determinados grupos económicos. Muitos dos terrenos ambientalmente protegidos funcionam como um território em pousio donde o poder político faz desafectações quando entende e a favor de quem entende, baseando-se em critérios que valem tanto quanto o seu contrário.
Em todas as possibilidades de escolha, da banca às escolas, da administração interna aos bolos que comemos na praia, o Governo de Sócrates tirou sempre poder aos cidadãos e reforçou a intervenção do Estado. E esse Estado que não cumpre as suas funções inalienáveis como desgraçadamente se vê na justiça ou na incapacidade de fiscalização do Banco de Portugal, reforça-se pela mão de José Sócrates como a grande empresa nacional. José Sócrates não vê problema algum no caso Freeport. Nem pode ver. O poder para ele é isso: gerir uma equipa negocial de luxo. (helenafmatos@hotmail.com)


Geminação. Desde que Lisboa manifestou o propósito de se geminar com Gaza que descobri o fabuloso mundo da geminação. Neste domínio as nossas autarquias parecem afectadas por uma síndroma de gravidez múltipla: tudo se gemina com tudo. Quiçá como resultado de tanta cidade gémea, a verdade é que não se percebe o que de substantivo resulta de tanta geminação. Algumas cidades invocam a participação em provas desportivas comuns, festivais de poesia e o reforço de laços com emigrantes portugueses. Enfim, nada que não pudesse existir sem a referida geminação. Donde (e à parte o custear das viagens do costume) não me parecer termos algo a recear com esta geminação entre Lisboa e Gaza. Espero até que José Sá Fernandes integre a comitiva que irá a Gaza por causa da geminação e se informe sobre os túneis que ligam Gaza ao Egipto e de caminho esclareça os portugueses sobre as razões que levam a que o Egipto não deixe passar pelas fronteiras terrestres tudo aquilo que os nossos gémeos de Gaza fazem circular nesses túneis. O que já desisti é de esperar que os partidos democráticos deixem de andar a reboque do BE e do PCP nesta matéria.


O estudo estrangeiro que diz bem do nosso Governo. É um clássico. A Pátria tem esta fraqueza: tudo que de bom ou mau de nós se diga para lá de Olivença tem uma enorme repercussão nas nossas lusas meninges. Quem nos governa sabe disso, daí que governos sucessivos, ao longo do século XX, tenham pago a jornalistas e a uns denominados intelectuais para escreverem sobre o caso português. Agora chegou a vez dos técnicos de organizações internacionais se prestarem a esta função.
Como tenho levado boa parte dos últimos anos a investigar a propaganda encomendada por vários governos de Portugal posso dizer que já se fez melhor e, apesar de tudo, às vezes menos obviamente servil. O que se mantém inalterável é a disponibilidade da imprensa portuguesa para publicar todas essas declarações como reputadas opiniões de observadores independentes. E estrangeiros, pormenor não de somenos em matéria de propaganda.

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