Médicos, juízes e o sonho do homem novo
Público, 22.01.2009, Helena Matos
A sociedade portuguesa tem de perceber como é possível tanto erro nos processos. E tanta indiferença perante eles
O chamado "caso Esmeralda" levou a um confronto de opiniões entre os juízes, através da Associação Sindical dos Juízes (ASJP), e o Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos. As críticas do colégio levaram a ASJP a fazer um comunicado onde declara que num Estado de direito "as decisões legitimamente tomadas pelos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades". Isto não só é absolutamente verdade, como precisamos desesperadamente que seja verdade, ou seja, tudo aquilo que se experimentou para diminuir a autoridade dos tribunais em favor de outras autoridades, nomeadamente as médicas, teve resultados que o futuro definirá como criminosos.
Portugal tem, aliás, neste capítulo da psiquiatria versus tribunais um historial que estaria muito mais estudado, não fosse hábito entre nós atirar para o canto tudo que possa descompor a imagem de tolerância da I República. Não só os factos estão longe de confirmar essa visão light da I República, como o sucedido em Portugal, após a publicação, a 11 de Maio de 1911, do decreto de reorganização dos manicómios nos mostra até onde se pode chegar quando o parecer dos médicos se sobrepõe ao dos tribunais e sobretudo o que pode acontecer quando os psiquiatras pretendem não tanto tratar as velhas doenças, mas sim criar um homem novo. As convicções republicanas e anticlericais de figuras incontornáveis da nossa psiquiatria e da nossa História, como Júlio de Matos e Miguel Bombarda, levaram a que se procedesse a internamentos psiquiátricos e a pedidos de interdição com base nas figuras da loucura religiosa e da loucura jesuítica que aqueles médicos não duvidavam existir e afectar não apenas boa parte do clero, mas também os crentes, sobretudo se fossem mulheres. Estas últimas, às questões da loucura religiosa juntavam ainda os problemas da loucura moral, através da qual as famílias procuravam resolver problemas que nada tinham de clínico, mas sim económicos ou de inconveniência social.
Dir-se-á que as opiniões dos tribunais não eram então muito diversas das dos médicos, pois este era o espírito da época. Sendo isso verdade, também é verdade que os mecanismos de funcionamento da justiça sempre garantem uma possibilidade de argumentação aos visados que não existia perante os médicos. E a isto acresce que a disponibilidade da sociedade para tolerar o autoritarismo em nome da saúde é muitíssimo superior à tolerância que revela para aquilo que é simplesmente imposto como uma pena, em nome da justiça.
Por tudo isto não vejo como positiva esta situação de juízes versus médicos a que o caso Esmeralda nos conduziu. Creio, contudo, que tal não só é inevitável, como virá a repetir-se frequentemente, pois a justiça portuguesa padece hoje da arrogância positivista que no passado caracterizou psiquiatras como Miguel Bombarda e Júlio de Matos. Para a Associação Sindical dos Juízes (ASJP) não basta que se diga que as decisões legitimamente tomadas pelos tribunais prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. Temos também de concordar com essas decisões. Note-se que os psiquiatras não se propuseram desrespeitar o tribunal, simplesmente não concordam com ele, como aliás muitos milhares de portugueses, entre os quais me incluo. Uma coisa é reconhecermos a autoridade dos tribunais, outra termos de fazer de conta que concordamos com eles. Aliás, que sentido faz pretender que os psiquiatras calem a sua opinião, quando os tribunais recorrentemente os chamam para que eles se pronunciem? Sob a carapaça da independência, a justiça deixou de sentir a necessidade de se explicar. Por isso a ASJP considera as críticas do Colégio de Psiquiatria à decisão do tribunal como "suspeições" que "violam desde logo a competência e a independência dos tribunais".
A omnipotente e omnipresente figura do legislador revê-se na figura do déspota iluminista e, como se vê com o recente Código de Processo Penal, a realidade e os valores da sociedade são indiferentes e suscitam quase um nojo visceral no nosso legislador e seus intérpretes. Aos seus olhos, as mulheres vítimas de violência doméstica e os velhos torturados para entregarem a reforma são um problema sociológico, quiçá um vector do processo de reabilitação do agressor com o qual são obrigados a conviver. Mais do que fazer justiça os tribunais portugueses parecem preocupados em criar uma outra sociedade. A moral científica almejada pelos psiquiatras republicanos deu lugar a uma justiça que vive duma sociologia de pacotilha. O resultado disto é grotesco, pois não só (como no caso Esmeralda) vemos um sargento ser considerado privilegiado em relação a um carpinteiro, como a triste realidade é que a justiça portuguesa é uma instância que só se aplica a quem de todo em todo não consegue invocar erros processuais. A sociedade portuguesa, que paga muito razoavelmente à sua justiça, tem de perceber como é possível tanto erro nos processos. E tanta indiferença perante eles.
Voltando ao caso Esmeralda, verifica-se que os erros cometidos pelos vários serviços sociais e pelo tribunal na gestão do processo não suscitaram nem reflexão nem medidas disciplinares aos seus autores. Curiosamente, a mesma tolerância perante o erro deixou de existir em relação aos médicos e aos polícias - note-se que tanto uns como outros têm por vezes de decidir em circunstâncias de urgência e risco com que um juiz não se confronta.
Paradoxalmente, a auto-indulgência é uma das características mais perturbantes do discurso da justiça sobre si mesma. Respeitar os tribunais é essencial, mas isso não quer dizer que tenhamos de ser acríticos perante o que lá acontece. Jornalista
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