Um pouco de verdade, tarde demais, tímida demais

Público, 17.01.2009, José Manuel Fernandes

Afinal o "milagre orçamental" não era tão sólido como ainda se proclamava a semana passada. Mas isso até é o menos: em tempos de crise há que contar com as pessoas e ainda se estará longe de dizer toda a verdade e só a verdade. Para todos sabermos que cabe a todos todos, no dia-a-dia, prevenir o futuro fazendo opções difíceis

Teixeira dos Santos começou ontem a falar verdade sobre a crise e o orçamento. Talvez não toda a verdade, mas parte dela.
Uma verdade dura. O "défice controlado", o défice que nos dava margem de manobra, as contas públicas sãs, o "milagre" conquistado à custa de iniludíveis sacrifícios, esvai-se como areia da praia na palma de uma mão. Os anunciados 2,2 por cento para 2009, os aprovados (há apenas um mês, não há três ou há seis meses) para 2009, saltam para 3,9 por cento. O endividamento público tornar-se-á no maior (em percentagem da riqueza nacional) desde que há registos. O desemprego saltará mesmo para os números dos que eram acusados de serem pessimistas ainda a semana passada.Nada disto é demasiado surpreendente. Quase tudo foi dito no Parlamento, quase tudo foi escrito nos jornais, quase tudo foi várias repetido nas televisões. Se há alguma surpresa, ela reside em o ministro das Finanças ter ido mais longe do que ainda esta semana deixava antever. E muito mais longe do que há pouco mais de uma semana o primeiro-ministro defendeu na sua entrevista televisiva. Mas, infelizmente, é uma surpresa que fica a meio do caminho. Ou, se preferirmos, a meio da verdade que devia ser dita aos portugueses.
No mesmo dia em que os dois países que são os principais clientes das nossas exportações (Espanha e Alemanha) anunciaram previsões de quebras do produto interno bruto bem superiores à do nosso crescimento negativo de 0,8 por cento, a pergunta que deve colocar-se é como poderá Portugal, país pequeno e com pouco poder de compra, economia quase totalmente dependente do exterior, conseguir um resultado bem melhor do que quem estava em melhores condições para resistir à crise. Teria sido provavelmente mais avisado que Teixeira dos Santos, até por razões políticas, tivesse feito as suas previsões no interior de um intervalo em que o cenário pior do que o apresentado fosse considerado.Porquê? Porque o Governo tem a responsabilidade não apenas de dizer que vai fazer o seu melhor para enfrentar a crise, como deve preparar os cidadãos para dias difíceis. Se vamos ter de passar por um período de "sangue, suor e lágrimas" (desculpe-se o exagero retórico e perdoe Churchill a sugestão de colocar em bocas ímpias palavras a que a História conferiu um estatuto quase sagrado), é melhor dizê-lo já. Vale a pena explicar porquê.
Há uma grande, uma enorme diferença entre os números da macroeconomia e a realidade da microeconomia, isto é, das pequenas empresas e de cada cidadão. A mesma diferença que existe entre comer "em média" meio frango e ver o outro comer o frango inteiro e ficar-se a olhar para o prato vazio. Os grandes números da economia dão indicações preciosas aos decisores políticos, permitem perceber a direcção em que nos movimentamos, mas não detectam com facilidade as aflições particulares. Sobretudo num país onde a informação estatística é muito deficiente. Até porque o problema não se resolve procurando apenas as situações limite, sabendo quantas pessoas recorrem à sopa dos pobres ou quantos dormem nas arcadas do Ministério das Finanças. O problema está, como quase sempre esteve, na classe média empobrecida, nos que têm vergonha de expor os seus problemas, nos que ainda se agarram aos salva-vidas para não passar para o outro lado.Exemplos? Olhe-se para o número dos que vêem parte dos seus ordenados retidos, ou cativados, em nome das dívidas que contraíram. Alguém sabe dizer quantos são? Ou tente-se perceber quantos problemas de pagamentos urgentes vão sendo "empurrados com a barriga" graças a cartões de crédito ou ao recurso cada vez mais precoce às contas-ordenado. Olhe-se para as escolas que fornecem alimentação aos filhos dos mais pobres e tente-se perceber se, entre estes, não aparecem de repente filhos de engenheiros e doutores. Passe-se pelas superfícies comerciais e medite-se no significado (e nas consequências) de cada vez existirem mais prateleiras com os chamados "produtos brancos". Estes sinais, que passam ao lado das médias, das medianas e dos desvios-padrão, que sobretudo são invisíveis para uma burocracia obcecada pelos objectivos políticos a atingir, raramente entram nos gabinetes dos decisores. Por isso eles pensam que podem continuar a suavizar as cores da crise que vivemos. Muitos dos "de baixo" sabem que não é assim. Sabem que é terrível quando se cai da carroça que leva a sopa e o mel. Estes não são dias para pedir milagres a quem nos governa. Mas são dias para continuar a exigir mais verdade e mais clareza. Sem medo de trazer as más notícias, antes percebendo que quem as recebe só agradece não viver de ilusões. Até porque está a pagar muito caro por essas ilusões.

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