As indigestas palavras do cardeal

Expresso, 20080117
Henrique Monteiro

Três histórias simples para enquadrar uma mais complicada: um dia, num país islâmico, há mais de 20 anos, o guia, motorista e tradutor que me acompanhava convidou-me para ir a sua casa. Disse-me mal daquele regime teocrático e - como grande prova de confiança em mim - pediu à mulher que me mostrasse o cabelo, o que ela, timidamente fez, como se na nossa cultura não fosse a coisa mais trivial do mundo ver o cabelo de uma mulher. É que as mulheres daquele país, por lei - lei do Estado, não só lei religiosa -, só podem mostrar o cabelo aos pais, filhos e maridos.

Um dia, em Maputo, um muçulmano meu amigo, oriundo de Cabo Delgado, no Norte do país, insistiu para que jantasse com ele. O meu amigo bebeu álcool (embora muito pouco e mesmo assim sob o olhar reprovador da mulher, que não usava véu). A conversa foi sobre temas diversos e poderia ter sido a mesma com um casal católico ou judeu.

Há cerca de 20 anos, o Expresso no âmbito de um inquérito que fez a Jorge Sampaio (e no qual colaborei) perguntou-lhe o que faria ele se um dos seus filhos se casasse com um negro. Ele respondeu que jamais se oporia, mas que aproveitaria a oportunidade para chamar a atenção desse filho para as prováveis diferenças culturais que iria encontrar.

Estas três histórias vêm a propósito da quantidade de palavras, a meu ver erradas, que se disseram acerca de uma intervenção do cardeal-patriarca de Lisboa. D. José Policarpo referia-se ao cuidado - "cautela", disse ele - que as jovens portuguesas devem ter ao casar com um muçulmano. Reparem que ele não disse que elas não se deviam casar, ou que qualquer casamento seria infeliz. Disse apenas que deviam ter cautela. Ou, de outro modo, disse o mesmo que Jorge Sampaio, ou o que diria qualquer pessoa sensata - chamou a atenção para o provável choque cultural.

Encheram-se páginas de mulheres casadas com muçulmanos e que são felizes. Bebo à sua saúde. Se são felizes, fizeram bem em casar-se com os homens que desejaram. Mas há milhões de páginas negras de vil submissão, humilhação e maus-tratos físicos - que são legais (sublinhe-se esta palavra 300 vezes) - em certos países islâmicos, como a Arábia Saudita, para dar um exemplo.

Cautela, pois, como diz o cardeal-patriarca. A chicotada, a chapada, a impossibilidade de sair de casa, o repúdio puro e simples pode esperar a mulher incauta.

Isto é desconhecido? Não! É mentira? Não! É racista? Não!

É uma afirmação verdadeira, mas daquelas verdades que ninguém quer que se digam. Estas verdades estragam as construções e engenharias sociais em que se baseia a nossa cultura. Por isso preferimos raciocinar sobre construções a fazê-lo sobre a realidade para assim construirmos um mundo de fantasia. Na presente edição em banca, pode ler-se uma reportagem sobre alguns casamentos entre muçulmanos e portuguesas. Como se fica a perceber, a realidade é, por vezes, perversa.

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