SE TU SOUBESSES O DOM DE DEUS!
Teresa Olazabal, Facebook, 2014.12.06
O Gregório era um sem-abrigo que a nossa família recolheu há aproximadamente 15 anos tirando-o da rua.
Era alcoólico e quando me aparecia bêbado para jantar servia-lhe um copo de água e ele reclama provocador : “e a pinga?” “Já lá está, se fizer o pino é capaz de a encontrar” dizia-lhe sem o olhar para que sentisse que não gostava de o ver assim. E ele ria-se escondendo a cara escarlate com as mãos, enternecido por ser castigado, por o tratar como um filho.
Sabia tudo o que se passava connosco e com os vizinhos porque passava horas esquecidas na rua em frente à porta do nosso prédio a ver as saídas e entradas. “Pelava-se” por coscuvilhar a minha família: “A Teresinha sabe que o senhor engº. hoje saiu mais cedo? Para onde terá ido?” “Não sei, Gregório, é com ele!” “Não se importa de não saber?” “Não, não me importo.” “Pois acho que se devia importar!”.
Plantava-se também em frente das casas dos meus filhos, nada lhe podia escapar: “vi a Ritinha, saiu de casa antes do marido.” “Ai sim?” “Acha bem?” “O que acho é que você devia ir dar uma volta e vir só à hora do jantar!” “Então mas eu não tenho outra família… se não me interesso por vocês, por quem me vou interessar?” E deixava-me enternecer por esta “sombra” que nos perseguia dia-a-dia-a-dia-a-dia.
A sua “glória” foi ter sido convidado para o casamento da minha Rita. A Dulce e eu metemo-lo numa barrela sem ninguém saber, cortámos-lhe as unhas e o cabelo, a Dulce “desfez-lhe” a barba e enfiou-o dentro de uma toilette “à maneira” roubada ao meu marido.
Foi tal a excitação que não dormiu nem comeu durante 2 dias, só bebeu... Na Missa soluçou de emoção – e de vinho – e na festa escondeu-se atrás de uma árvore a espreitar o que se passava.
Há anos, no Natal, um amigo meu que lhe achava graça, deu-me um dinheiro que poupou com muita renúncia e muito sacrifício para lhe comprar um presente. Depois de muito pensar, achei que o que lhe daria mesmo alegria, seria talvez ele escolher o que lhe apetecesse e eu iria depois pagar, porque se lhe desse o dinheiro para a mão, era certo que o iria “beber”. Disse-lhe que desse uma volta e que escolhesse alguma coisa de que gostasse. Escondeu a cara para se rir daquele modo de menino e nunca mais respondia. Insisti, ralhei, mas por fim percebi que ele simplesmente não sabia ir a uma loja, entrar e escolher, nunca o fez...
“O que fazemos dos Teus predilectos, Senhor? Como é possível um homem chegar aos 60 e tal anos e não saber do que gosta, não ser capaz de entrar numa loja e escolher, não perceber o que quer? Como Te vou poder um dia encarar? O que vou responder quando me perguntares: “O que fizeste do teu irmão”?
Depois de alguns dias sem aparecer, veio com um ar envergonhado.
Depois de alguns dias sem aparecer, veio com um ar envergonhado.
“Então, Gregório, já pensou? O que escolheu?” “Bem, se a Teresinha achasse bem, poderia convidar o Salvador para ir comer comigo a um restaurante…”.
Quer dizer, o que ele propoz foi jantar ou almoçar com um dos meus filhos, dar-lhe um gosto convidando-o, partilhando o presente com ele, sem guardar tudo para si... Que grande lição de amor nos deu com este seu generoso gesto!
Olhei para ele emocionada e pensei: este homem já foi bebé… criança… como seria? Como – quando – perdeu a inocência?
Como – quando – lhe roubaram a confiança, os sonhos? Que feridas estarão no coração de um homem desta idade? Há quanto tempo deixou de ser abraçado pela mãe? “Como Te vou encarar um dia, Senhor?”
Passados dois anos o Gregório começou a emagrecer. Toda a família se afligiu e todos nós insistimos para que fosse ao médico e se deixasse tratar. Teimoso, dizia que não, que era um mau olhado que lhe tinham feito… Tolo! Bem me cansei a zangar-me com ele, a ameaçar e a ralhar. E ele sempre a fugir. Magro de mês para mês primeiro, e de dia para dia depois.
Passados dois anos o Gregório começou a emagrecer. Toda a família se afligiu e todos nós insistimos para que fosse ao médico e se deixasse tratar. Teimoso, dizia que não, que era um mau olhado que lhe tinham feito… Tolo! Bem me cansei a zangar-me com ele, a ameaçar e a ralhar. E ele sempre a fugir. Magro de mês para mês primeiro, e de dia para dia depois.
Uma manhã, em Agosto, o meu filho Vicente falou-me: “mãe, encontrei o Gregório. Ele vai morrer! Está que mal se pode arrastar! Posso levar-to?” “Traz-mo!”.
Quando tocou à porta cá em cima e o vi percebi que estava mesmo mal. Olhei para ele e ele com os nervos e a magreza, deixou cair as calças, e assim ficou no hall do andar especado em cuecas, boné na mão e um olhar de medo. Apeteceu-me abraçá-lo e não sei porquê pedir-lhe desculpa… mas que parvoíce!
Puxei-lhe as calças para cima, agarrei-o pelo braço e trouxe-o para dentro. Enquanto a Dulce lhe dava um banho, eu fiz a cama e deitámo-lo mais morto que vivo. Demos-lhe de comer mas não quis.
Era uma 6ª. feira e percebi que não poderia passar sem um médico. Chamei um que o viu e torceu o nariz. Pediu análises urgentes. E o Gregório com o mimo, e os cuidados melhorava de cor. Uma amiga analista veio no dia seguinte de manhã cedo tirar sangue e à noite tínhamos os resultados – nada de preocupante.
O médico disse-me que não tinha tempo de fazer grande coisa antes de férias mas que à volta iria pedir vários exames. E assim o tempo foi passando, e o Gregório a arrebitar. Ao 4º. dia começou a abusar e a pedir coisas como se estivesse num hotel: “quero peixe!” “não tenho peixe, Gregório” “mas eu quero!” “pois, mas não vai ter. Quer um bife de frango?” “Não! Quero peixe, já disse!” “Pois então não come nada!” “Ah a Teresinha está a tratar-me como um garoto e eu isso não admito, quero peixe!” “Pois amanhã vai embora, pode ser que alguém lhe arranje peixe!”. Calou-se amuado e eu dormi nessa noite com o quarto fechado à chave porque ele estava agressivo.
De manhazinha o Salvador levou-o embora e ele à saída olhou-me ameaçador. Ao fim de 8 dias o Salvador que o visitava muitas vezes disse-me: “Mãe, o Gregório vai morrer!”. Fiquei aflita e fui buscá-lo, meti-o no carro e disse-lhe: “sabe onde o vou levar? Ao Hospital de S João” “e se eu não quiser ir?” “quero lá saber se quer ou não quer ir, é para lá que vai”.
Um dia abrasador de Agosto e o Salvador e eu agarrados a ele um de cada lado e ele sem conseguir já dar um passo. Ficou internado com soro, e começou a saga dos exames. Ao fim de uns dias vieram as noticias: cancro generalizado, 3 meses de vida quanto muito. Caiu-me a alma aos pés e uma agonia entrou dentro de mim. Na minha mente passaram os anos em que o Gregório entrou nas nossas vidas. Tanta loucura, tanta borracheira, e tanto amor!
Quando voltei ao quarto não o consegui encarar de frente. Fiquei um bocadinho e vim embora com um peso no coração: “ele vai morrer, ele vai morrer”. Ao fim de uns dias disseram que lhe iriam dar alta. “E para onde o levo?” pensei. Arranjámos uma pensão perto de nós muito simpática, ao lado de um Centro Social que lhe iria dar acompanhamento na higiene, refeições, tudo – seria um luxo de vida enquanto ele vivesse. E chegou o dia de o ir buscar. O médico entregou-me muitos relatórios, explicou a dieta que tinha que indicar ao Centro, os remédios que teria que tomar.
Desceu numa cadeira de rodas; como não se podia ter de pé, ajudaram-me a metê-lo no carro e guiei rumo à pensão onde já tinha estado a combinar com a dona todos os pormenores. Mas a meio do caminho olhei para ele de lado e vi-o com uma cara esquisita. Perguntei o que era e ele respondeu: “estava aqui a pensar se vou para a pensão ou para casa da Teresinha”… “Vai para minha casa, claro!” respondi não sei porquê… Falei no caminho à assistente social do Hospital e pedi-lhe que transferisse a assistência do Centro Social da zona da pensão para a minha zona. Falei ao meu filho Salvador para prevenir o meu marido e à minha Dulce para fazer a cama. Quando chegámos a casa o espanto era total.
Deitei-o, e ali ficou ele a olhar para mim como quem diz com um ar enervantemente desafiador: “eu sabia que ía voltar”. E assim se começou a viver uma vida linda e abençoada em nossa casa.
O Gregório definhava e foi chamado para a consulta dos paliativos onde estava inscrito em regime ambulatório. Chegado o dia declarou-me que não ía. Falei à médica que me disse “eu passo por aí logo ao fim da tarde”.
Quando a médica chegou deixei-os os dois no quarto muito tempo. E quando ela lhe explicou que ele teria que ir à consulta e ele lhe respondeu que não iria, ela disse-lhe: “então, se o Gregório me permitir, virei eu cá fazer as consultas”. Será que temos a noção de que tropeçamos com santos todos os dias, em todos os cantos?
Um fastio tremendo, nada o satisfazia, só queria coca-cola e até nos fez rir: “se eu soubesse como isto é bom, nunca teria provado vinho”. À tarde vinham do Centro Social tratar dele, e de manhã a Dulce e eu arranjávamo-lo. À noite sentava-me ao lado dele antes de ir para a cama e ali ficava a conversar quando ele estava praí virado. Rezava com ele uma Avé Maria antes de me ir deitar. Quando estava mal disposto ralhava-me: “tanta Missa, nesta casa é só Missas!”. E assim se passou um mês, mais outro, mais outro.
A pouco e pouco deixou tudo – comer e beber. A magreza aumentava quase de hora a hora e virá-lo era um suplício. Fóra disso não tinha dores. Vomitava a todo o momento e vivia assustado com medo de ter que voltar ao Hospital. A médica continuava a vir e a dizer que o que estávamos a fazer cá em casa era o que lhe fariam no Hospital, tinha tudo o que era preciso. Houve a fase da revolta, a fase da agressividade e a fase da zanga. Começámos a ter que dar assistência também de noite, arranjámos uma cama articulada para ficar mais cómodo. Todos na família ajudavam. A nossa empregada adoptou-o como um mais da família.
O Salvador vigiava até às 2 ou 3 da madrugada e depois ficava eu. Lembro-me de ter dito “lá para cima” quando o trouxe: “ó Senhor, entrego-te a vinda do Gregório cá para casa. Ajuda-me a aguentar e a amar”.
No dia 8 de Outubro de tarde o Gregório teve umas pioras repentinas – deixou de me conhecer e entrou num estado de agonia terrível. Falei á médica: “talvez seja o fim” disse-me. Redobrei o acompanhamento de noite, o Salvador mais presente. No dia 9 acordámos com ele estacionário nesse estado e até com um retomar de consciência – respondia com a cabeça certinho a tudo. De manhãzinha quando o fui ver, ele olhou para mim com os olhos muito fixos e fez-me uma declaração linda que me fez chorar: “meu amor, minha flor”.
Às 3h, a hora da Misericórdia, estando eu a rezar o terço da Misericórdia junto dele, Jesus veio buscá-lo.
O Gregório não saiu para nenhuma capela mortuária. Ficou na ultima cama que foi a sua, na casa que era a dele com a família que escolheu para passar os últimos tempos da sua vida. E nós agradecemos a graça de termos sido escolhidos por Deus para o recebermos. Porque através dele o Senhor fez em nossa casa, na nossa família e nos nossos corações grandes maravilhas… SANTO É O SEU NOME. Todos na família fomos abençoados. Através do Gregório, o mais pequeno dos pequenos, um bêbado sem jeito, Jesus chegou até nós de uma maneira incrível e única.
Como é grande e surpreendente o nosso Deus! Quando às vezes alguém me diz “és fantástica!”, penso: “se tu soubesses o dom de Deus… Se tu soubesses como Deus derramou o Seu imenso AMOR sobre nós a partir dos nossos miseráveis cinco pães e nos tem dado de comer até à abastança total e ainda nos deixa com tantos cestos cheios… Se tu soubesses da minha minha miséria…!
Se tu soubesses o dom de Deus…!”
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