Um forte estímulo para o estudo da História
Foi com os meus alunos que tive a certeza de que um professor pode contagiar favoravelmente os seus alunos se ele próprio amar o que ensina.
Como é natural, lembro-me bastantes vezes dos meus ex-alunos e retenho muitas das palavras trocadas, em encontros ocasionais ou previamente combinados que invariavelmente significam o retorno "à nossa escola". Nessa reconstituição de um tempo que nos aviva lembranças, recordamos antigos colegas, professores e empregados e revemos histórias que nos marcaram, numa expressão de mútua afeição pelo espaço onde nos conhecemos e trabalhámos e do qual continuaremos espiritualmente a fazer parte.
As histórias que vou contar incidem sobre duas escolas, sendo Fernando Pessoa relevante porquanto foi com a leitura assídua da sua obra que tomei consciência da verdade de Paul Ricoeur: […]li, compreendi, amei, e foi com os meus alunos, despertos para a leitura do poeta, que tive a certeza de que um professor pode contagiar favoravelmente os seus alunos se ele próprio amar o que ensina. Ao contrário do que hoje se propagandeia não é o respeito pelos interesses dos alunos que deve prevalecer, porque isso será uma forma trágica de os limitar, mas sim o desejo de lhes trazer algo de novo que lhes suscite outros interesses e os incentive a uma postura crítica e interventiva, no mundo em que vivem.
Um exemplo do que pode ocasionar um estudo apaixonado de um autor foi o que aconteceu em 1984/85, aproveitando a celebração do cinquentenário da morte de Fernando Pessoa e após um percurso pessoano por Lisboa, em que o Café Martinho da Arcada (séc. XVIII) foi um dos espaços visitado por alunos do 11.º ano de Português (Desporto, Electricidade e Electrotecnia), da Escola Sec. Marquês de Pombal — antiga escola técnico-industrial, de referência, criada em 1888, referência essa que se mantinha ainda na década de 80, nos seus diferentes cursos, bastante concorridos, e cujas oficinas pela sua história eram espaços cuidadosamente preservados, sobretudo, por professores e empregados.
Tendo sabido, durante esse itinerário, que a voracidade dos bancos ameaçava o velho Café onde Fernando Pessoa escrevera e se encontrara com os da sua geração (Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, entre outros) decidimos escrever uma carta-aberta, dirigida à Assembleia da República, à CML e ao Primeiro-Ministro, pedindo a salvaguarda do Café Martinho da Arcada, através da sua classificação de interesse público, já que o valor concelhio não constituía um verdadeiro obstáculo à sua transformação. É justo referir o grupo de alunos que forçou essa postura e que se manteve empenhado no seu propósito até satisfazê-lo – António Aires, Artur Anjos, Cristina Barbosa, Licínio de Assis e Paulo Malícia. Divulgada ampla e solidariamente por toda a comunicação social e criado que foi um vasto movimento solidário, a decisão favorável, depois de vários percalços, veio do Ministério da Cultura, através do despacho de 24 de Abril de 1985 que nos foi enviado.
Não foi um discurso sobre a "cidadania" que motivou estes alunos, nem a "pedagogia de rua", como agora se identificam as visitas de estudo, nem tão pouco um "projecto de Escola", apenas a leitura da obra de um autor, profundamente contextualizada, que os alunos não conheciam e pela qual se entusiasmaram.
A segunda história decorre em 1980/81, com uma turma do 11.º ano de Electrónica, na qual leccionava Francês, na Escola Secundária Afonso Domingues — escola industrial criada em 1884, e também de referência, e que, à semelhança de outras, foi sendo abandonada, acabando por ser extinta em 2010 e exposta ao vandalismo. Por gosto pessoal, a Literatura Portuguesa intervinha nas aulas de Francês, convivendo com a Literatura Francesa, e não raro um ou outro aluno aproveitava essa situação para levantar questões várias ou continuar a exploração de temas, nos intervalos. Um desses alunos chamava-se Henrique Leitão e, leitor assíduo de Fernando Pessoa, pelo menos na sua juventude, ganhou recentemente, e de forma muito justa, o Prémio Fernando Pessoa pelo seu excelente trabalho enquanto Historiador da Ciência.
Para além do seu manifesto interesse pela Literatura, e muito especificamente pela obra de Pessoa, sobre a qual gostava de reflectir e discutir ideias, Henrique Leitão distinguia-se ainda pela sua simplicidade e pelo seu espírito de entreajuda, tirando, quantas vezes, dúvidas aos colegas, durante os intervalos, sobretudo a Física e a Matemática, em que era, e usando a gíria estudantil, "um barra" (aliás era "um barra" em tudo).
Num tempo em que a História está ameaçada de morte, sendo lamentavelmente considerada não tão importante quanto o Português e a Matemática, o Prémio Fernando Pessoa atribuído a Henrique Leitão será um forte estímulo a que mantenha, juntamente com os seus colegas e alunos, e com o empenho e a alegria que lhe conhecemos, a investigação focada na História da Ciência. Será uma forma também de lembrar e de homenagear "a nossa escola", Henrique!
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